22.1.12

A Criatura



A sua pele tinha mil metros de comprimento. Nasceu assim, generosa, num dia mais longo que os outros, e ninguém sabia o que lhe fazer. Era um monstrinho em tamanho de criatura acabada de parir. Cabeluda, sem formas nem choro, apenas olharam para um monte de pele rosada onde pulsava um coração. Na altura pensaram em ignorá-la, em esquecerem-se dela, em darem-na como morta. Certo seria que ninguém contestaria tal decisão, porque seres aberrantes vingam pouco e ninguém os lamenta. Mas as consciências engrandeceram-se. Ou pesaram-se e tornaram-se insuportáveis para os seus próprios donos. Apenas cada um deles saberá o que lhes passou pelo interior. No dia em que nasceu podiam ter acabado com tudo mas lá quiseram ser mais que Deus e deixaram-na viver. Deixaram-na medrar por compaixão e mandaram-na para casa embrulhada numa manta de peles que crescia a cada dia. A sua pobre mãe, que se dividia entre o amor de progenitora e o asco de comum mortal, acolheu-a com dó entre os seus braços, mas sem amor, por não se conseguir entregar a contemplações a uma beleza que não existia. Com a passagem dos anos esse amor nunca cresceu, ao contrário da pele. A proporção invertera-se e, à medida que a pele se estendia, os seus afectos foram mirrando. O brilho que se extinguiu no dia do seu nascimento só se enegreceu ainda mais ao virar de cada ano. A cada folha de calendário que caía, o amor entre elas padecia, enquanto que a pele, essa masmorra dolorosa, avançava frondosa. Chegava a ser cruel pensar que apenas pudesse ser amada se a sua pele fosse outra. Era o que mais doía naquela pele: não a verem além dela.
Por não aguentar a solidão que essa grande barreira criou, entregou-se ao destino que estava traçado desde o dia em que nasceu, mas que decidiram ignorar. Quis, finalmente, morrer. Quis morrer enaltecendo aquilo pela qual tinha vivido: a sua pele. A sua feia pele, que durante anos ocultou uma bela mulher. O melhor dos seres humanos. O maior dos corações.
Sufocou-se nela sem lutar. Nem lutou por tanto a odiar. Enrolou-se naquilo em que sempre viveu e sofreu. Naquele dia, mais curto que os outros, enforcou-se na sua própria pele, sem pena nem compaixão. Apenas naquele dia descobriram que ela podia ter sido amada para além da pele.





2 comentários:

  1. São textos como este que me fazem voltar sempre a este blog. Parabéns adorei. Bj

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  2. Obrigada Maria!
    E eu espero continuar a tê-la por cá.
    Sinto-lhe um carinho especial e isso é bom demais.
    Beijinho.

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