31.7.14

Repetições # 3




Hoje é dia da etiqueta "Repetições".


É caso para dizer que, há exactamente um ano, acabou-se um sofrimento e aprendeu-se uma lição.








Quando era muito pequena, ainda não sabia ler nem escrever, preconizei aquele que havia de ser o meu maior exercício de humildade. Ou pelo menos o mais emblemático e que me viria a servir, no futuro, de termo de comparação com outros momentos idênticos. Tive consciência dele apenas uns anos mais tarde mas sei que foi nessa idade, em que os dentes de leite ainda estavam para ficar, que comecei um percurso de auto-análise. De tomada de consciência. De uma das muitas lições de vida que viria a ter.
Nesse tempo, em que era ginasta, tinha muita vaidade em ser a menina que era escolhida para a linha da frente da formação. Aquela que todos conseguiriam ver a fazer as cambalhotas, os pinos e as espargatas. Um orgulho. Gostava do aprumo do maillot  azul com a gola de marinheiro. Do pequeno apanhado no cabelo. Da pose de pequena diva da ginástica, com as costas rigorosamente direitas e rígidas.
Até que um dia, passados meia-dúzia de anos, descobri em casa da minha prima, que também tinha pertencido ao mesmo grupo de ginástica rítmica, uma cassete de vídeo que o meu tio tinha guardado, religiosamente, com uma autocolante a anunciar "Sarau de ginástica 1985".
Eu e a minha prima lá fomos ver a cassete e eu, como é óbvio, transparecia uma evidente segurança de que iríamos assistir apenas a mais um grande momento da minha infância, cheia de genialidade. Mas o que acabei a ver foi uma menina, perdida no meio de outras meninas. Com um maillot  azul com gola de marinheiro, igual ao de todas as outras meninas, agarrada a uma boia, a uma bola, a um arco e a tentar encontrar o X no chão que indicava a minha posição e completamente interessada em chamar a atenção do público em vez de cumprir a minha rotina.
Nesse dia vi a menina que não conseguiu fazer o pino depois de três tentativas esforçadas, apesar de, nas minhas felizes memórias, apenas recordar um sarau fora de série em que eu tinha cumprido o que esperavam de mim, com grande sucesso.
Foi preciso meia-dúzia de anos depois para ter o meu exercício de humildade.
Coloquei em perspectiva aquela nova consciência e soube, a partir daí, que o que achamos de nós nem sempre é o que realmente somos. Aprendi, a partir desse dia, que afinal prometo muito e realizo pouco. Que sou uma fraude.
Aprendi que era escolhida para a linha da frente pela conveniência de ser a mais pequena e não por ser a melhor. Aprendi que só temos uma oportunidade para fazer o nosso melhor e que as restantes tentativas são apenas o aumentar do número de falhas.

Trinta anos volvidos e fui obrigada a lembrar-me do meu maillot  azul com gola de marinheiro.
Relembrei, com a dor de quem se viu humilhado, que as expectativas sobre mim não se cumpriram e que, ainda assim, havia uma lição a reter daquele momento: a lição de humildade.
Hoje, perante um júri de mulheres e homens adultos, em que me defendi, defendi um trabalho suado e sofrido, e em que fiz o pino à primeira e sem quaisquer ajudas, voltei a ter a minha lição de humildade.
Erradamente, defendi que o papel de um arquitecto, quando passa por intervir num edifício histórico, deve ser mais modesto e menos centrado em si e que, resumidamente, se trata de um exercício de humildade para um arquitecto assumir a responsabilidade de intervir num edifício sem impor a sua marca.
A referência a "um exercício de humildade" foi mal acolhido por uma troika de divas que, naturalmente, adoram tudo nesta vida menos o conceito de humildade.
Erro o meu.
Para mostrar interesse em esclarecer todas as questões, a menina do maillot azul que nunca concretizava o pino à primeira, ainda tentou explicar que "humildade", naquele contexto, significava respeito. Respeito pela pré-existência, pelo edifício, pela sua história.
Segundo erro.
Dois conceitos, altamente desconhecidos para os jurados num dia só: Humildade e Respeito.
Admito que foi puxar pela minha sorte, esquecer a minha sina e gozar com o meu karma, mas ninguém me iria defender a não ser eu própria. E preferi arriscar a ficar parada a ver os outros brilharem com as piruetas. Mas voltei a ser colocada na primeira fila.
Naquele momento senti-me pequenina. A fazer investidas contra a esteira, uma e outra vez, sem nunca conseguir fazer o pino.
Tive o meu exercício de humildade.
Pelo menos hoje, alguém o teve.




29.7.14

O Twin Peaks é para meninos




Muito medo.

É o que me lembro do Twin Peaks.

Sei que, numa época em que só existiam dois canais, não havia grande filtro naquilo que se via na televisão lá de casa. Por essa razão vi coisas tão didáticas para uma criança de dez anos como o Twin Peaks.
Na realidade, não me lembro de imagens em particular ou, até, da trama, mas aquela musiquinha diabólica... por céus... aquilo mete-se no cérebro e, por isso, mantive sempre uma memória muito sombria desta série. Digamos que o nome Laura nunca seria uma hipótese para meter a uma filha minha. Há uma imagem de carnes retalhadas de tom azulado que associo ao nome Laura, e que não me apetece nada perpetuar.

Mas ontem, tantos anos depois de meter o Twin Peaks e a Laura Palmer arrecadados num canto qualquer empoeirado da minha memória, li uma notícia que veio ressuscitar aquilo tudo.
Ontem, ao ler n'O Público que o David Lynch se preparava para revelar algumas imagens inéditas da Laura Palmer, senti o mesmo calafrio a subir-me pela coluna. Verdade: a imagem que acompanhava o artigo, da Laura Palmer meia-morta meia-viva, também não ajudava. Mas depois fiquei a contorcer-me com aquela curiosidade sinistra e lá fui procurar uns resumos de uns episódios, o trailer, e umas imagens que me avivassem a memória (para quê, pergunto eu?) e tive, exactamente, a mesma sensação de desconforto. É alucinação a mais para a minha fraca resistência cardíaca.
Por isso, David Lynch, não tenhas pressa rapaz.

Nos "entretantos", enquanto eu me mentalizava que aquela séria, na verdade, não exibia nada que não tivesse já acontecido na realidade e que até se aproximava de alguns homicídios que de vez em quando aparecem nos noticiários, eis que ando umas páginas à frente e lá estava isto...
http://www.publico.pt/mundo/noticia/adolescente-japonesa-detida-por-suspeita-de-decapitacao-de-colega-de-escola-1664526 

E pensei para comigo: "Não. Nunca haverá imaginação nem enredo de telenovela que supere a realidade".


O mundo está mesmo para a acabar, não está?
Muito medo devo eu ter mas do que se anda a passar nas ruas e não na televisão.
Afinal, vai-se a ver, e o Twin Peaks era para meninos não era?



28.7.14

Post mortem





Lembro-me, estranhamente, do teu cheiro.
Uma mistura de madeiras quente e doce, com tabaco e Whisky.
Parecias trazer sempre o Verão.
Cheiravas bem.
Lembro-me da tua camisa rosa, de mangas arregaçadas.
Sempre engomada.
Denunciava o brio das mãos de uma empregada devota.
Lembro-me do teu cabelo. Claro que sim.
Todas as pessoas te conheciam o cabelo.
Ruivo, como as tuas sardas.
Temperamental, como o teu feitio.
Lembro-me do teu riso engraçado.
Cheio de humor inteligente.
Cheio de alegria.
Assim julgava eu.
Lembro-me de seres um homem maior que tu mesmo.
Megalómano. Inesquecível. Gigante.
Lembro-me do teu à vontade.
Dos teus cumprimentos honestos.
De como me juntavas dois beijos à face como se eu fosse uma filha.
Lembro-me do teu nome. Completo.
Da tua assinatura.
E de como ela deixou de se reproduzir.
De como o quiseste apagar.
Dessa maneira tão triste e fatal.
Tão definitiva e dramática.
Lembro-me das últimas palavras que me disseste.
Sem que soubesse que seriam as últimas.
Lembro-me da manhã seguinte.
Das palavras atropeladas.
Lembro-me de me perguntarem se eu já sabia.
Se eu já sabia que tinhas ditado o teu fim.
E não, eu não sabia.
Nem sequer esperava.

O que me lembro, muito bem,
Muito tempo antes dessa decisão,
É que os teus olhos tristes,
Há muito,
gritavam:

Solidão.




22.7.14

Da podridão






Quando o coração apodrece,
Morre-se o sangue.
Matam-se todas as vidas dentro da vida de um corpo.
As vísceras mirram-se, lentamente, de fora para dentro.
Como as emoções. Qual desamor.
O baço escurece-se.
Falece em primeiro.
Desiste dentro de nós.
Os fígados e as entranhas misturam-se como lamas,
Ficam negros.
Como a dor.
Os rins, esses silos de emoções,
Despedaçam-se de tristeza.
Perguntam-se pela generosidade do coração.
O coração ironiza-se. De mau.
Quando se apodrecem as artérias,
Não mais se irrigam os canais.
Os nossos. Os que nos levam aos outros.
Matamo-nos a nós.
Matamos a viagem dos outros até nós.
Quando apodrecemos por dentro,
Mesmo com a pele imaculada por fora,
A sepultura já está cavada.
Metemos lá os sentimentos.

Quando o coração apodrece.
Nada mais há para salvar.
Morremos sós.

Morremos tão sós.






19.7.14

18.7.14

A caixa verde



[Nota prévia: Conheci o André da Loba vai para cima de 12 anos, na época, precisamente, em que mantinha a relação de que falarei no texto em baixo. Por ter recuado até essa altura, lembrei-me do André e do seu incrível trabalho. O André já não faz puto de ideia de quem eu sou mas eu achei piada reencontrá-lo através do seu trabalho.
André, pá, se por acaso fores um dos vinte que vem aqui ler isto, deixa-me dizer-te que, na altura em que namorava com o outro, ainda te pisquei o olho. Mas, já se sabe... a farda dos escuteiros nunca deu pica a ninguém ;)
Agora, metam lá um semblante sério porque o que se segue também o é, mais ou menos.]



Deixamos sempre coisas para trás quando mudamos de casa. E por vezes, inexplicavelmente, arrastamos connosco coisas que não nos fazem falta para seguir em frente.

Há muitos anos, quando saí de casa dos meus pais, tinha todos os meus bens, os meus objectos, enfiados no meu quarto com a certeza que nunca os tiraria de lá mas que eu, isso sim, seria devolvida ao lugar dos meus objectos.
Isso nunca veio a acontecer. Não voltei definitivamente àquele quarto. Segui a vida por outros quartos até chegar àquela que é hoje a minha casa. Só minha. Quando regresso ao meu quarto de adolescente encontro os mesmos velhos objetos no mesmo lugar, sem sentido, inertes, por vezes sem história. Os que tinham importância foram sendo levados por mim. Mereceram um lugar no sítio que habito. Os outros, os que ficaram no quarto da pessoa que já não sou, não sei que lhes faça ou se, sequer, é obrigatório que lhes faça alguma coisa.
De quando em vez, lá espreito para dentro do armário grande para perceber o que poderei resgatar. Qual das coisas merece ser levada comigo. Evito ao limite esse exercício por o saber penoso. Não por desencadear más memórias mas por, de algum modo, sentir que as estou a arrancar do sítio onde elas pertencem, onde as quero, onde sei que as irei encontrar. De certo modo tenho medo de as perder. Mas, num dia de tédio puro, lá me lancei ao armário grande.
Bonecas de porcelana, dossiers da faculdade, trabalhos do liceu, uma flauta, uma caixa dourada. Uma caixa verde.
Fiquei parada a pensar.
Conhecia a caixa dourada. Guarda as memórias dos tempos de escutismo. Fotografias, emblemas, umas meias velhas, a boina...
Também conhecia a caixa verde. Senti um pulo no peito.

A caixa verde esperava, há quase uma década, para ser redescoberta.
Sabia bem o que ela continha. Talvez por isso ela tenha ficado ali, tanto tempo, sem que a vontade de a abrir me assaltasse.
Dentro daquela caixa estão sete anos de duas vidas. A minha e a de um amor de adolescência. Estão bilhetes de amor; cartas trocadas durante as férias num tempo (tão recente) onde não existiam telemóveis nem internet; de objectos sem valor mas cheios de significado; de flores, agora secas, que foram colhidas a caminho de um encontro comigo; de cadernos recheados de poemas e também de letras de músicas, desenhos e aspirações ingénuas; estão fotografias; estão cheiros; estão memórias. Estão muitas coisas que eu já tinha esquecido.
Felizmente, depois de abrir a caixa verde, o que me invadiu foi a nostalgia e a tranquilidade de quem tem o fim de uma relação bem resolvido. Sem esqueletos no armário. Ressentimentos. Também não senti saudade. Senti ternura, graça, felicidade por ter vivido momentos que devem ser vividos na idade certa. Senti-me bem comigo por a vida me ter dado a oportunidade de, ainda adolescente, poder viver um amor sem compromissos, obrigações ou rotinas. De viver um amor na simplicidade com que ele se deve viver.

Não sei se algum dia conseguirei desprender-me daquela caixa verde, daquelas recordações que me invadem quando lhe levanto a tampa mas, disso sei, não preciso de a tirar do seu sítio e de a trazer para minha casa. Em vez de uma memória transformá-la-ia numa imagem viva, presente, e não é assim que quero cristalizar aqueles anos.
Quero que se mantenham, precisamente, lá atrás, para me lembrar como foi tão melhor o caminho que percorri depois, para poder chegar até aqui.


17.7.14

O Senhor Tédio





O Senhor Tédio entediava-se,
Só de ter de respirar,
Aborrecia-o o bocejo,
Odiava trabalhar. 

Pousava a cabeça nos cotovelos,
E pensava para si:
"Estarei eu entediado,
Ou ter-se-á o tédio apoderado de mim?"

Não entendia o Senhor Tédio,
Esta coisa de ser feliz,
De viver uma vida tranquila,
Estando tudo por um triz.

Mas o tédio instalava-se,
Sempre que se queria animar.
Entediava-se com a alegria,
E fartava-se por não festejar.

Reconhecia o senhor Tédio,
Que ser entediado não o deixava viver,
Mas lutava um par de dias,
E voltava-se a aborrecer.

Mas um dia o Senhor Tédio,
Muito cansado de se amuar,
Convenceu-se a si mesmo:
"Nunca mais vou entediar!".

Foi então para a rua,
De sorriso no rosto estampado,
Mas cansou-se de tanto sorrir.
E chegou ao trabalho entediado.



16.7.14

Voltei. Vazia.




Gostava de dizer que voltei cheia de mundo, mas nestes dias apenas cavei um vazio maior dentro de mim. 


Dias antes de partir aconteceram coisas que se prolongaram no tempo dentro da minha cabeça. Depois passaram pelo coração, pelo estômago e, de vez em quando, voltavam à cabeça. Algumas feridas tinham de ser mexidas mas outras preferia-as intactas. Vejo agora que só as aprofundei mais. Desorganizei-me todinha. Já não sei quem sou.

Há uns dias, desamiguei-me de pessoas pouco amigas e deveria sentir-me tranquila com isso, mas não sinto. Também por elas prescindi de algumas coisas e agora sinto que me traí só para lhes fazer a vontade. Só para as libertar. Eu não fui eu. Fui o que quiseram que eu fosse. Agora sinto vergonha de mim.

Também por estes dias senti que, quem um dia disse que tinha um amor incondicional por mim, me mentiu. Que, afinal, o que sente por mim é um ódio vestido de indiferença, que eu não compreendo, e que não me foi explicado. Estou perdida porque as minhas vísceras foram mandadas ao mar, sem compaixão. Sem lágrimas. Mas a mim continuou-me a doer. A mim matou-me.

Não senti saudades de algumas pessoas de quem deveria ter sentido, e não me sinto bem com isso. Questiono-me porquê. Porque não lhes senti a falta e porque não me sinto bem. Terei perdido a alma, ou as outras almas é que se afastaram de mim? E se afastaram, que lhes fiz eu que a minha consciência não me alertou?

Pensei mais e mais no que me faz feliz e no que me tem alimentado a infelicidade, e questiono-me acerca das decisões que tenho tomado na minha vida. Se as tenho tomado ou as tenho deixado tomarem-se sozinhas. A resposta é tão óbvia que me custa até ouvi-la dentro da minha cabeça. O que é isso, afinal, de tomar as rédeas da vida? Qual é o sentido da vida de cada um se acabamos a viver uma vida que não queremos nossa?

Pensei, porque penso sempre, e voltei a pensar, nos bens que terei nos próximos 365 dias. Naqueles que não terei e gostaria. No dinheiro que os outros têm. No dinheiro que eu merecia ter e não tenho. E sinto-me um lixinho por isto. Porque sei que está errado ser-se assim. Porque me odeio por pensar em dinheiro. Porque sempre detestei quem o fazia e acabei por me tornar nessa pessoa. Tornaram-me nessa pessoa. E agora é mais fácil culpar os outros que agir. E também me odeio por isso.

Dei voltas à cabeça sobre o que fazer da minha vida. O que poderia eu fazer para mudar o que me incomoda. Mudar de cidade, mudar de emprego, mudar de corpo, mudar de cara, mudar de casa, mudar de amigos, mudar de religião, mudar de cheiro, mudar tudo o que faz de mim esta pessoa em que me tornei mas da qual já estou farta.

No meio deste desalinho todo também não encontrei o caminho onde seria suposto. Não procurei, sequer, onde costumava procurar. Nem sei se ache grave não ter sentido falta de escrever, nem de ler, nem de ouvir música, nem de sonhar. Não senti falta e não sinto. A receita esgotou-se, eu esgotei-me. De repente parece que nada faz sentido. Eu deixei de fazer sentido. 
Para que servem as férias afinal?