*
Nos
dias em que largava o escritório, vestia roupas modestas, e entrava no carro e
percorria a cidade à procurava de quem precisasse de ajuda, perdia sempre algo
de mim para dar aos outros.
Perdia
tempo, perdia qualidade de vida, perdia horas de sono, perdia a fé nos homens e
na sociedade. Acabei por perceber que o pouco que eu fazia pelos outros, não
chegava para nada.
Era
apenas mais alguém que comia num dia, mais dois ou três que, ocasionalmente,
ganhavam o calor de uma manta, outros que viviam melhor com um cigarro e um par
de palavras perdidas ou, até, a felicidade de uma garrafa de vinho dada a um
bêbado, era tudo o que eu consegui trazer de felicidade a quem vagabundeava
pela cidade.
Nunca
tentei educar um bêbado a preferir alimentar-se com leite. Nunca tive a
presunção de procurar abrigo para quem, por opção, vivia nos passeios das ruas.
Fui
o maior dos idiotas quando tentei fazer de ti uma mulher digna quando nunca
poderias passar da puta mais nojenta de toda a cidade.
*
Cheiravas
mal, entre as pernas, quando te colhi na rua.
Tinhas
um ar imundo e metias nojo só de olhar. Fedias por todos os poros e ninguém se
atravessava no teu caminho com medo de ser contaminado. Pela imundice do corpo
e da cabeça. Essa cabeça porca e miserável em que vivias.
Ninguém
te olhava por seres desprezível e ordinária. E por teres aquele ar de puta que
se entregou ao álcool e à droga e teve de acabar num qualquer chão de estação
de comboios, a dormir, em cartões empapados e panos porcos, sob um piso
espezinhado por todos os pés da cidade.
Dormias
de pernas abertas sem decoros nem
pudores ou com receio de que todos te vissem as vergonhas que ali trazias.
Tinhas perdido essa vergonha, a dignidade e o rosto bonito que te marcava, há
mais tempo do que aquele que te lembravas.
Ainda
não eras puta e já eras nojenta e nem te davas conta. E quando passaste de puta
a vagabunda e ainda te vias apenas como puta. Naqueles dias, em que vivias na
merda fétida, não tinhas consciência do quão fundo tinhas ido na condição
humana.
Já
não tinhas nome nem identidade, para as pessoas que por ti passavam. Para
alguns, transformaste-te apenas numa memória, enquanto a puta nojenta. Outros
lembravam-se de ti como a puta vagabunda.
Eras
puta na mesma. Não interessava.
*
Beijava-te
sempre com amor antes de sairmos de casa. A minha mão abraçava-te o pescoço com
suavidade, dirigindo-te os lábios aos meus e beijando-te de olhos fechados, num
toque leve.
Mas
a beleza que acolhia o teu rosto e o teu corpo não encontrava paralelo no
interior desse peito bafiento. Tinhas maus sentimentos, má educação e os maus
modos, típicos de quem nasceu em barracas entre falhados e putedo. Cresceste
igual. Não te exigiste ser melhor.
Quando
te olhei a primeira vez, ignorando que o coração me atraiçoaria, não vi nada do
meu mundo em ti. E não vi que ao meu mundo fizesse falta alguém como tu.
Lamento hoje que a cabeça tivesse cedido à minha longa solidão e tivesse
acreditado que, fazendo de ti uma mulher digna, poderias ser a minha exemplar
mulher. Estava enganado. Enganado na dignidade que te poderia dar e enganado na
exemplaridade de mulher que um dia poderias vir a ser.
No
último dia que te beijei antes de sairmos de casa, deste razão ao que a vida
tinha feito de ti. À justiça de teres uma vida de merda. Afinal, o lamento que
sentia pela linda mulher que vivia porca, enrolada pelos passeios imundos, não
tinha razão de ser. Mereceste sempre a vida que tiveste.
No
último dia que te beijei, ao sairmos de casa para irmos ao encontro da festa
surpresa que tinha preparado para te celebrar o aniversário, não levei pelo
braço a mulher que eduquei. Levei pelo braço uma mulher linda que nunca deixou
de ser puta.
Nessa
noite, em que acreditava que te iria surpreender, acabaste tu por me
surpreender a mim. Encontrei-te linda, deslumbrante, a ser consumida por um dos
teus antigos clientes. Foste ao encontro da tua natureza.
Morri
ali.
Morri
por te perder. Morri por perder o meu amigo de uma vida. Morri de vergonha por
não te ter tratado como a puta que eras. Morri por perceber que foste sempre
puta aos olhos de todos e nunca a mulher digna que me diziam ver. Morri por
perceber que afinal todos se riam de mim.
Nessa
noite larguei-te na rua e devolvi-te à puta que sempre viveu dentro de ti.
belo, o teu texto.
ResponderEliminarindigno seria ir contra a sua natureza.
(o coração de manteiga está sempre sujeito a ser corno?)
bj
Se calhar. É o que acredita nas pessoas. E depois se desilude.
EliminarR.