23.4.22

Um par de mundos

Luciana Urtiga



Os meus pés deixaram de assentar sobre a terra.
Vivo entre cá e lá, pendente entre este mundo e o outro.
Entre estes dois mundos, ou três, que não se conhecem mas são vizinhos.
Quantas realidades haveremos nós de conhecer e quantos mundos contaremos pelos dedos quando sairmos deste para outro?
Ou quantos realidades paralelas - ou convergentes - conheceremos ainda do lado de cá?
E que decisões tomaríamos na consciência de que existem outros lugares e tempo e seres e vidas?
Escolheríamos ser outros ou insistiríamos em ser os mesmos?
Tiraríamos lições sobre nós mesmos se nos olhássemos de fora?
E se houvesse uma outra vida, outra dimensão, onde não existisse mais ninguém?
Gostaríamos de nós? Ou só gostamos e desgostamos de nós porque existe o outro para estabelecermos comparações?
Este mundo, sem reflexos, pessoas ou comparações, não criaria homens mas anjos e os anjos não vivem entre mundos.
Estão num plano estável e estático e etéreo sem oscilações nem ecos. Vivem suspensos em algo que não compreendemos nem alcançamos. Vivem ou existem. Simplesmente existem, numa circunstância que não nos interessa viver, precisamente porque os anjos não vivem: simplesmente existem.

Eu. Eu vivo entre cá e lá. Entre este mundo e o outro. Sem ilusões, apenas à espera que as dimensões se revelem, as pessoas se agitem de pânico e este mundo acabe.
Em breve.





18.9.20

Migrantes






Não têm ódio.
Chama-se medo.
São ilhas como nós.
Afundadas.
À espera que a maré baixe.
E a rezar por salvação. 
A um Deus, que não existe.



25.8.20

Regressar




Preciso de me emocionar.
Preciso de viajar e ver coisas com os olhos que nunca vi.
De deixar que essas coisas e paisagens me penetrem os sentidos.
E que os sentidos acordem.
Preciso da emoção do desconhecido.
Ou de algo antigo que deixei para trás.






7.2.18

7 anos disto...




Sem direito a comer gelados com a testa, que uma mulher ainda manda na sua vontade.



18.1.18

37




37... e não me estou a sentir o Batman. 



20.11.17

A Liturgia e o Preço Certo




Ontem fui à missa. Permiti-me ir sondar o meu estado de espírito e talvez esperasse alguma serenidade mas, por alguma razão, senti uma grande inquietação e, não, não é no sentido "do espírito que se inquieta com Deus". Deixemo-nos disso...

A verdade é que, em vez de me sentir envolvida e concentrada no momento, é-me muito difícil abstrair da envolvente e interiorizar o ritual litúrgico, quando dois terços da missa continuam a ser o que já eram desde que me conheço: uma repetição de frases feitas, entoadas como mantras, sempre nos mesmos momentos, com a mesma cerimónia. É caso para dizer que quem viu uma já viu todas. E isto não fideliza clientes. Até percebo, até determinado ponto, que a repetição e a entoação, proporcionem relaxamento mas, tal como no yoga, às tantas tens de mudar de posição ou começas a ficar entorpecido e perdes o interesse em ir à próxima aula. Por exemplo, eu gosto muito de ver o Preço Certo, mas não pode acontecer existirem sempre os mesmos prémios, com os mesmos preços, a Lenka estar sempre de minissaia, o gordo dizer sempre "espetácle", a roda calhar sempre no 100, e a montra final ser sempre 22 mil euros e no final, o mesmo homem com um pullover de malha grossa de mil nove oito nove, ganhar. Em algum momento, a Lenka tem de ir de calças, o prémio maior tem de ser uma caixa de rebuçados em vez de um carro, e o concorrente tem de esbardalhar-se por 5€. Caso contrário, qual é que é o propósito? Se eu já sei que todos os dias passam o mesmo programa, porque é que eu o hei-de voltar a ver todos os dias durante trinta anos?
A missa é isto. Perdoem-me, mas é.
Talvez com excepção para a homilia que, dependendo do talento do orador, pode ser enriquecedora ou parecer uma conferência de imprensa do Manuel Machado. Ontem, ainda que tivesse começado bem com uma leitura do Livro dos Provérbios sobre os dons das mulheres, e um provérbio é sempre fonte de sabedoria e reflexão, depois a homilia pareceu mesmo um misto de Manuel Machado com um piquinho de Manuel Maria Carrilho. Mas podia ser eu a escalpelizar já demasiado.

Assim, não é difícil perceber porque é que os meus pensamentos se dispersam e, quase sempre, tendo em consideração o contexto sagrado, eu diria, acabo a pecar. Ora reparo na pessoa que chega a quinze minutos do fim da missa, ou olho para o padre e não consigo evitar a comparação com o mestre Yoda, ou reparo que há um pozinho que já precisava ser limpo, ou penso nos número de mãos por lavar que já se enfiaram naquela pia de água benta, ou impressiono-me com a falta de mestria do senhor padre ao meter meia hóstia das grandes na boca como se estivesse a comer umPringle. A mim ensinaram-me que não se roía a hóstia! Ou engoles inteira ou vais desfazendo no céu da boca com a língua, mas mandar uma trinca é que era um grande sacrilégio no meu tempo! 
Na hora da comunhão também não sou branda com os pensamentos críticos: sou a única a ficar sentada no banco. A única! Ora bem, no meu tempo, comungava quem se sentia de bem com Deus, com os Irmãos e com o mundo em geral. Claro que isto pode ser vago porque a consciência de cada um varia muito mas, pergunto-me, será que toda aquela gente se porta bem 24 horas/dia, 7 dias/semana? Toda a gente é bom pai, bom filho, bom amigo, colega, funcionário, cristão? Epá, fiquei mesmo lá na merdinha porque no meu exame de consciência eu chumbei em mais de 50% dos critérios de avaliação e isto não dá direito a hóstia. Depois tentei tranquilizar-me e pensei que, pelo menos, era sinal que ali, naquele local, só estava rodeada de pessoas do bem que já atingiram o nirvana (não, não pensei nada). E nisto, lembrei-me de uma tia minha dizer que tomava sempre a hóstia porque não tinha pecados (ai filha...) e, por pecados, queria dizer que não tinha cometido pecados capitais ou ido contra os dez mandamentos. Pois, eu até espero bem que não. Assim de repente, apraz-me que ela nunca tenha matado ninguém, nem cobiçado a mulher alheia, ou invejado a galinha do vizinho, porque não se espera menos de um bom cristão. No entanto, pergunto-me, se é só desta check list que se faz um ser humano honrado e digno de receber Jesus dentro de si (que é como quem diz: estar em condições de receber a hóstia).
Pois eu não comungo, talvez, há uns dez anos. Acho que a última vez que o fiz foi quando a minha avó morreu, por respeito, e porque nesse momento o meu coração estava em paz. Fora isso, nunca mais me achei em condições de receber Jesus porque nunca mais "limpei a casa", não pratiquei a minha vida cristã e não mantive como hábito o sacramento da confissão que, lá está, no meu tempo era uma espécie de ritual detox pré-comunhão. Era uma espécie de "a menina não paga mas também não anda" da igreja católica. E eu, não sendo de longe a mais fiel das servas, uma coisa na minha vida sei: existem regras, se não estás disposta a segui-las, salta fora. E eu saltei fora.

Uma nota positiva, mais ou menos, nesta cerimónia - e isto depende dos padres e das igrejas - é que já não se dá o beijinho ao vizinho. Digo "mais ou menos" porque a intenção do ritual é boa mas nunca sei se me apetece alinhar. É uma espécie de ritual de abertura do Web Summit: levantem-se e dêem lá uma beijoca e um abraço ao colega do lado e a seguir cantamos o Kumbaya. Mas sem a parte fashion da coisa... e sem o kumbaya.
Eu sou das que sente o constrangimento de cumprimentar quem não conheço mas é igualmente constrangedor veres os meninos todos a darem beijinhos entre si e tu ficares de fora. É como se não gostassem de ti mas tu precisares da aprovação de todos. Há qualquer coisa de friozinho bom na barriga. Por isso, lá te arrastas um banco meio para o dar o beijinho à senhora que nem sabe rezar o Pai Nosso e apertar a mão ao cavalheiro que rezou a missa toda de cabeça baixa, sabe Deus porquê.
Apesar de tudo, e dos momentos de incompreensão do que se passa na maior parte da liturgia, ainda assim, algo dentro de mim me diz, que a melhor parte deste Preço Certo, é mesmo aquela em que, genuinamente, as pessoas dão beijos ao gordo e agradecem ao senhor presidente da junta ter emprestado o autocarro. E é isso que é uma pena estar a perder-se.


10.10.17

A M O - T E   .    P A R A   S E M P R E  .


                                                

                                       

5.10.17

Todos Mundo



Tenho saudades do mundo de há dez mil anos.
Aquele em que eu não existia.
Aquele em que todos éramos ignorantes.
Em que a terra era plana e ninguém contestava.
Em que as noites se sucediam aos dias sem ninguém fazer perguntas.
E as pessoas eram bichos e os bichos eram pessoas.
Todos iguais.
Sem consciência do indivíduo, do coletivo e da própria existência.
Éramos ramos caídos no solo, num solo pisado pelo Sol, de um Sol que ninguém sabia existir.
Éramos felizes sem o ser porque naqueles tempos não havia felicidade.
Nem tristeza, nem ódio, nem solidão.
Porque não havia nada.
Havia apenas brisa e a brisa batia em todos da mesma maneira.
Mortos, vivos, pessoas, bichos, pedras, mar.
Éramos todos iguais. Todos nascidos e morridos do mesmo e para o mesmo.
Sem história.
Éramos todos mundo.
Hoje não somos nada.


Tenho saudades do mundo de há dez mil anos.
Aquele em que eu não existia.


18.9.17

E agora, algo completamente diferente!





A minha afilhada mais pequena, disse hoje à mãe:

"Mãe, gostava de experimentar ter um filho mas gostava que fosse anão, para ficar sempre assim pequenino".


Ora bem, acho que a humanidade concorda em dar o prémio "Diz lá a cena mais marada, sinistra e perturbadora  que te lembras" a esta criança. Ou então é de mim, que estou sensível.
Mas cheira-me que isto é só o primeiro capítulo de outros que se estão por desenrolar.

[Mãezinha, não a queiras mandar exorcizar, não!]



Cães vadios

Lee Jeffries



Na noite,
Há os cães e os vadios.
Almas moribundas,
Perdidas.
Corpos perdidos,
Devastados.
Consumidos pela solidão,
Pela vida,
Pela morte,
Por tragédias e desgraças.
São gente viva,
Mas sem vida.
Uns há,
Que nem gente são,
São cães,
São vadios.
São os restos,
Da civilização.