30.1.12

A purga



Hoje empurraste mais fundo a faca que já tinhas fincado no meu peito. Como ainda se via um fio da lâmina, deste mais um avanço para que não restassem dúvidas de que me estavas a matar. E ela cá está! Hirta sobre o meu peito. Para todos verem que, este lixo em que me transformaste, agora, já não existe mesmo. 
Por causa de ti, e do golpe que diferiste, caí na cama de lágrimas soltas. Solucei uma dor que não era a da lâmina entre a carne e os ossos. Enfrentei no espelho um rosto desfigurado que não era o meu. Envergonhei-me por ser a pessoa, que me convenceste que sou. Estou, irremediavelmente, em cacos por ser fraca como dizes.

Por não me conseguir enfrentar como sou, e por agora apenas ver um ser disforme, agarrei-me violentamente ao que podia fazer por mim. Gritei por ser outra depois de me recompor. Olhei-me nos olhos e quis renascer. Quis esquecer que nasci. Quis purgar todos os meus defeitos.
Peguei na faca que tinha no peito e arranquei-a do seu lugar. Limpei-lhe o sangue. Afiei-lhe a lâmina. Corri para o espelho que uns tempos atrás me tinha mostrado uma face destroçada. Olhei-me e pensei que parte dela deveria libertar. Que parte de mim adoravas que eu pudesse agora magoar? Que única parte de mim poderias tu ainda adorar?
Estes meus longos cabelos negros já não serviam para enxugar tantas lágrimas. Não me emolduravam o rosto que antes dizias perfeito. Já não eram a juba que tanto elogiaste. Os meus longos cabelos negros conheceram a libertação que naquele momento eu precisei. Conheceram a lâmina da tua faca bem de perto. O escalpe abrilhantou-se aos poucos. As madeixas de cabelo entregaram-se ao chão que eu pisava e abandonaram a cabeça de onde nasceram. A cabeça ficou leve. A tua faca que me matou foi a mesma que me libertou.

Purguei com ela os males que fizeste crescer em mim. A pessoa feia que mataste quis-se ver renascida assim. 
Tenho agora a cabeça limpa. Tenho agora a cabeça, literalmente, limpa.






3 comentários:

  1. *****

    Talvez por sermos do mesmo signo :) por vezes estas "histórias" parecem minhas. Só que não tenho o dom da escrita.
    Bj

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  2. e com a cabeça arejada, coisas novas aparecem...bjitos. sónia

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  3. O texto é muito forte e a imagem que o acompanha encaixa-se na perfeição!

    "Ouve-se o bimbalhar dos sinos retumbantes,
    Lançando para os céus um brado furibundo,
    Como os doridos ais de espíritos errantes
    Que a chorrar e a carpir se arrastam pelo mundo"

    Charles Baudelaire

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