29.12.14

Os cães do ano 2014





À semelhança do ano passado, estive a rever todos os cães e, organizei aqui os posts mais vistos de 2014.
Mas, desta vez, fiz um mix, e escolhi os meus 20 preferidos por entre os 40 mais lidos. Pode ser?
Gostei de escrever outras coisas que ficaram na lista das menos lidas e, se assim foi, não vale a pena maçar-vos com repetições.

Não posso deixar de mostrar a minha perplexidade pela preferência que tiveram pelos Áudio Textos (gostam de ouvir a minha voz e a do anónimo benfeitor, é isso?). 

Por este ano está fechado o canil. Encontramo-nos em 2015!


Os 20 posts mais lidos de 2014 :



23.12.14

E é isto...



Chove. É dia de Natal. 
Lá para o Norte é melhor: 
Há a neve que faz mal, 
E o frio que ainda é pior. 

E toda a gente é contente
Porque é dia de o ficar.
Chove no Natal presente.
Antes isso que nevar.

Pois apesar de ser esse
O Natal da convenção,
Quando o corpo me arrefece
Tenho o frio e Natal não.

Deixo sentir a quem quadra
E o Natal a quem o fez,
Pois se escrevo ainda outra quadra
Fico gelado dos pés. 




“Chove. É Dia de Natal”
Fernando Pessoa, in "Cancioneiro" 



18.12.14

Alegoria das ilhas

Hugi Hlynsson



I
As ilhas
O mar, estendido como um lençol, denunciava protuberâncias aqui e ali. Semeadas sem regra. Separadas por uns metros ou por milhares de quilómetros. No espaço, e no tempo, sem referências nem escalas, não se sabia onde começavam e acabavam os montes de pedra poisados sobre o mar. Não se lhes conhecia o tamanho ou a hierarquia. Talvez nem fosse importante. 
O mar regia as pedras. As pedras amontoavam-se em ilhas. As ilhas não eram mais que duas: a que foi semeada aqui e a que foi semeada ali. Quando se olhava da ilha grande, não se via a ilha pequena. E da ilha pequena não se sabia o que se via porque ainda ninguém da ilha grande lá tinha estado para poder contar.


II
A ilha grande
A ilha grande, vista de perfil, parecia um chapéu de coco. Ou talvez se parecesse mais com uma cartola. A ilha elevava-se da base que tocava o mar, para além do que seria gracioso ou razoável. Não fossem os contornos rochosos e a sua cor negra, e pensar-se-ia estar antes perante um toque blanche. A sua aba tinha um quinto da altura do cone e o cone teria metade do diâmetro da coroa. Um portento. Caso não existissem outras ilhas esta seria, certamente, a maior. Caso existissem, não se sabe que proporção teria.
Na ilha grande olhava-se sempre de cima para baixo, os olhos não procuravam outras ilhas para não se confrontarem, e a realidade conhecida era apenas uma: a sua. Que motivos haveriam para olhar para o lado? Ali havia tudo o que era preciso. Na ilha grande fazia sempre bom tempo. Havia chuva apenas quando era preciso, nevava quando se desejava, e fazia sol na maioria dos dias. As noites eram amenas e duravam doze horas. Havia comida, água doce, trilhos, abrigos e areia fina, em toda a ilha. Podia passear-se, correr e descansar tranquilamente, sem preocupações.
Na ilha grande vivia apenas um homem. E esse homem tinha tudo o que precisava para ali viver. Assim o pensava.


III
A ilha pequena
A ilha pequena, se um chapéu fosse, não passaria de um boné. De fraco perfil e carácter. De tão baixa e insignificante que era, havia dias que nem era avistada da ilha grande. Talvez fosse notada de outras ilhas, se as houvessem, mas ainda assim era pouco provável pela sua falta de relevo e de enlevo. Era como se uma folha de papel tivesse pousado em cima de outra. Nem a rebentação suave do mar na sua orla faziam a ilha ver-se de ponto algum.
Apesar dessa infeliz constatação, percorrida a passo, de ponta a ponta, a ilha pequena adquiria outra importância. Outra dimensão que não podia ser vista de perfil mas apenas de cima, se isso fosse possível. Para percorrer a ilha eram necessários setenta e cinco milhões, trezentos e cinquenta e oito mil passos. O que, traduzindo em dias, somariam dois mil e quinhentos dias, sempre a andar. O que em anos seriam, praticamente, sete.
Na ilha pequena, que tinha uma superfície muito grande, o terreno era árido e pobre. Quase uma superfície lunar. Não tinha árvores nem plantas, nem água, nem construções ou estradas porque não havia espaço para as ter. Toda a sua superfície estava coberta, absolutamente coberta, mas de outras coisas, que não essas, fundamentais à vida. A Ilha pequena estava lotada: de pessoas. Todas amontoadas, tão amontoadas que nem se conseguiam olhar de cima para baixo. Como a ilha não tinha relevo, ninguém se podia elevar para ver os outros de cima. E como os seus habitantes tinham todos a mesma altura, ninguém conseguia fugir dos olhares alheios. Olhavam-se, por isso, todos olhos-nos-olhos. Havia indivíduos bonitos e feios. Maus e bons. Os que trabalhavam e os que nada faziam. Havia homens justos e os que estavam sempre a ser julgados pelas suas injustiças. Mas tinham todos a mesma estatura.
Na ilha pequena não havia nada para além destes homens e da igualdade que reinava entre eles.


IV
O homem da ilha grande
Na ilha grande, vivia um só homem. Um homem só. Nunca se cruzou com outros homens e por essa razão não sabia se existiriam mais iguais a si. Não conhecia conceitos de beleza por não ter com quem se comparar e não sabia o que era o medo por nunca ninguém o ter assustado. Não sabia o que era a fome porque teve sempre o que comer. Não sabia o que era o frio porque sempre teve roupas para se cobrir. Não sabia de onde tinha vindo, ou como tinha ido ali parar, e não sabia nem tinha como garantir que do sítio de onde veio, não teriam vindo, ou ainda viriam mais, homens iguais a si. Mas não se questionava. Não se questiona algo que não se sabe existir.
A vida na ilha grande, sozinho, tinha-lhe ensinado que as perguntas morriam órfãs, assim como ele nasceu. Que as perguntas não faziam eco, se não na sua cabeça atarantada de tão vazia. Percebera também, desde cedo, que questionar-se sobre a existência de outros, ainda que secretamente, lhe causava ansiedade. Fazia-o questionar-se a si e à sua existência e isso é assunto para inquietar um só homem. Sobretudo, um homem só.


V
A descoberta e a viagem do homem da ilha grande para a ilha pequena
Num dos mais comuns dias na ilha grande, caiu uma cana. Uma cana vinda do céu. Tão grande, tão forte, que o homem, momentaneamente, cegou. De medo. Não sabia a origem daquela cana, nem para que servia, e o desconhecido fazia-o tremer como não sabia ser possível. Questionou-se se haveria alguma coisa para além da ilha grande, para além de si.
Nesse dia, tirou-se do medo, e olhou de frente o horizonte. Empurrou os olhos para além do mar. Não via nada. Estava cego ainda. Um nevoeiro na vista impedia-o de ver para além dos olhos. Abriu um pouco mais o peito e os olhos começaram a funcionar.
Apesar do nevoeiro lá se ia denunciando uma existência além da sua. Uma pequena, pequeníssima, ilha. Não sabia se lá vivia alguém mas não esperava que assim fosse. Quando olhava melhor o perfil da ilha pequena imaginava não ser possível alguém ali viver. Era tão pequena. Tão plana. Tão monótona. Tão cinzenta. Tão estéril. Como poderia alguma coisa ter vindo dali?
Com medo, afrontado pela curiosidade, precisou fazer-se ao mar, sair da ilha, conhecer o sítio de onde veio a cana que quase o cegou. O homem meteu-se numa jangada e remou. Remou dia e noite fora. "Onde estaria a ilha pequena que parecia tão perto?" - Pensou. A viagem fez-se longa, muito mais que aquilo que havia estimado. A ilha pequena, que lhe parecia-lhe logo ali, estava agora cada vez mais longe e o homem nada via para além duma imensidão de mar.
Quando a manhã ameaçava pôr-se, a jangada embateu na crosta firme da ilha pequena. A ilha era, afinal, gigante. Tão gigante. Não se apercebera, nem pensara sobre isso antes mas, a distância a que estava da ilha faziam-na parecer mais pequena que a realidade. Agora, diante daquela imensidão, e ao olhar para trás para a sua ilha, apercebera-se de como ela era, afinal, tão menor que a ilha pequena. Surgiu nos seus pensamentos, o quão pequeno era perante a nova realidade. Como o facto de estar num lado ou noutro mudava tanto a perspectiva que tinha do tamanho das ilhas.
Desembarcado na ilha, posou os pés e não viu a areia fina. Quis beber água mas esta era salgada. Quis sentar-se para descansar mas o frio apossou-se do seu corpo. Quis dormir e não tinha onde se deitar. Amargurou-se de arrependimento e adormeceu num choro que não sabia ter, num chão que afinal não queria pisar.


VI
Os homens da ilha pequena
Ao alvorecer sentiu um homem perto de si. Muitos homens. Todos iguais. Eram muitos mais do que supunha existir e muitos mais do que os que habitavam na grande ilha, onde só habitava ele. Eram tantos, que não sobravam espaços entre eles. Apesar da multidão, abismou-se com a tranquilidade com que o olhava. Com o silêncio daquela massa de gente. Estenderam-lhe a mão, levantaram-no e comunicaram com ele em tom de submissão. Eram humildes os habitantes da ilha pequena que, afinal, era tão grande. Olharam-no nos olhos e o homem percebeu que tinham todos o mesmo tamanho: o seu.
Passaram horas, talvez dias, a conversar. A aprender a comunicar numa língua diferente. Falaram das duas ilhas, da vida em ambas e das imensas dificuldades de viver na ilha pequena. Falaram de exclusão e inclusão. Dos medos e das poucas certezas. Da fome e da ignorância. Daquilo que une todos os homens da ilha pequena e do que os separa do único homem da ilha grande. A cana que dias antes tinha caído na superfície da ilha grande foi apenas uma das muitas que os homens da ilha pequena enviavam regularmente. Procuravam alguém além deles próprios. Procuravam ajuda. 
Até àquele dia definhavam na sua insignificância e confrontavam-se com a sua invisibilidade naquele mar. Dali, era possível ver muitas outras ilhas mas nenhuma delas os parecia ver. Antes do homem da ilha grande chegar, há muito que tinham dado o caso por perdido. Há muito que as canas lhes pareciam vãs.
No dia em que o homem da ilha grande atracou na crosta dura e estéril da ilha pequena, algo importante se salvou.


VII
A descoberta da Humanidade
O homem da ilha grande, que tinha tudo o que precisava para lá viver, descobriu na viagem à ilha pequena que tudo o que tinha na sua ilha de nada lhe valia ou valia apenas a si. Perguntou-se de que serviria ter tantas e tantas coisas se não tinha um par de olhos com quem as partilhar. Questionou-se sobre a justiça que havia naquele mundo de ilhas, onde um homem tinha tudo e os outros não tinham nada. Rendeu-se à realidade, à verdade que o fez acordar, sobre a vida dos homens da ilha pequena que era, afinal, tão maior que a sua.
Percebeu, nesse dia, que não havia mais nenhum sítio onde quisesse estar que não aquele. O sítio de onde conseguiu ver toda a humanidade. O sítio onde se viu a si.



[E é isto que me inquieta]



13.12.14

Fim





Preciso de um.



9.12.14

Mandrágora




"Segundo uma lenda medieval a raiz da mandrágora era como um pequeno homem dormindo dentro da terra e, ao ser retirado de seu descanso, dava um grito tão agudo que era capaz de deixar surdo, enlouquecer e até mesmo levar alguns homens à morte. 
Com base nessa crença, foram sendo criadas várias técnicas para se retirar a mandrágora do solo sem sofrer com o grito da planta. Alguns tapavam os ouvidos, afofavam a terra ao redor da mandrágora, amarravam a planta ao pescoço de um cachorro e faziam com que o mesmo corresse, arrancando a raiz do solo. 
Escritos medievais afirmam que é mais seguro colher mandrágora durante uma sexta-feira à noite, pouco antes do nascer do sol. Depois de ser colhida alguns lavavam a raiz com vinho e a guardavam embrulhada em seda vermelha ou branca. Aos olhos dos caçadores de mandrágora, tanto trabalho para conseguir a raiz valia a pena, pois a planta possuia variados usos, tanto mágicos como medicinais.
A raiz é a parte mais curiosa dessa planta, pois cresce como uma batata, muitas vezes bifurcada, ganhando traços semelhantes ao de um pequeno homem. Por conta do curioso formato humano é que a fama "mágica" das mandrágoras se difundiu rapidamente. Pitágoras se referiu a mandrágora como "antropomorfa". O agrônomo romano Lúcio Columela a definiu como "semi-homem"."




Uma mulher, nascida de um buraco na terra, veio ao mundo nua.
Matou o primeiro homem que viu. E depois o segundo.
Tinha sangue nas mãos, no rosto.
Não na alma.
Mas não encontrou o que procurava.
Chamavam-lhe filha do diabo mas o diabo repudiou-a.
Disseram ser parida por um cão mas o cão mordeu-a.
A mulher, nascida de um buraco na terra, veio ao mundo para retribuir o mal.
Matou a primeira criança que viu sorrir. E depois matou a que viu chorar.
Comeu-lhes as vísceras que fez soltar com as unhas cravadas na carne.
Não conseguiu o que queria.
Calcorreou ruas, sem roupas ou pudor, envergando apenas o sangue de quem foi matando e comendo. 
Com medo, as mulheres da aldeia recolhiam-se a elas e às crianças. Mas não tinham mão nos maridos.
Com curiosidade, os homens arriscavam-se olhar por entre frestas e postigos.
A mulher, nascida de um buraco na terra, não falava, não respirava, não pensava, não chorava, não sorria, não torcia a cabeça para olhar.
Esperava apenas a noite cair-lhe sobre a vontade de matar.
Um dia, numa noite, um homem, tolo de inocência e bom de coração, atravessou-se no seu caminho sem se aperceber.
Viu de perto a morte quando as mãos da mulher lhe abriram o peito e lhe roubaram o que tinha de bom.
Finou-se quando a boca dela se colou à sua e lhe sugou a alma.
O grito, curto, agudo, durou cem anos a desaparecer.
Ainda há quem na aldeia o ouça gritar ao nascer dos dias.
A mulher, essa, sumiu-se poucos passos depois.

Tinha, finalmente, o que lhe faltava:
Uma alma. Um coração.


[Quantas mulheres não se tornam assassinas, inimigas delas próprias, apenas porque lhes falta quem lhes entregue o mais importante de si?]