26.8.12

A viúva e a criada



A expressão no rosto era a mesma de quando enterrara os seus outros seis maridos. Já se tinha habituado a casamentos curtos e a lutos longos. Nenhum dos seus sete casamentos tinha durado mais de seis meses mas a infelicidade de os perder a todos parecia prolongar-se por uma eternidade. Uma espécie de maldição, falavam, que parecia ter-se abatido sobre aquela bela viúva. A mais bela e voluptuosa viúva que todos os homens preferiam morrer a arriscar ter, do que morrer sem nunca ter tentado. Todos os seus maridos faleceram entre as suas pernas, ainda estas mal se tinham aberto, mas todos morriam de satisfação no rosto. O romance quedava-se rápido, interrompido pelas mortes inesperadas mas as alegrias pareciam estar-lhes gravadas nos corpos.
Tórridas noites e tórridos dias, viam o desfilar de corpos por aquela cama, quentes e em exaltação, como se adivinhassem que o fim se aproximava. Amou todos os seus maridos, todos os dias, e fornicou-os todas as noites, como se antevisse o seu final prematuro. E tinha razão para o temer.

Depois dos funerais chegava a casa, sem forças, e com o corpo magoado pela perda, desejando apenas entregar-se ao conforto da sua casa. A mansão, que tinha herdado do primeiro marido e que nunca deixou para trás, ainda lhe trazia boas recordações e por isso manteve sempre tudo no seu lugar e nunca se desfez de nenhum empregado. Quando chegava a casa tinha sempre à sua espera a sua mais fiel empregada. Como de costume pedia a Carlota que fizesse o seu chá de jasmim e mel, lhe preparasse o banho quente e lhe perfumasse o quarto com incenso da sândalo.
Carlota, a sua jovem criada, obedecia-lha e tinha-lhe verdadeira devoção e nunca, jamais, questionara uma ordem ou um pedido da sua bela patroa. Carlota tinha-lhe uma submissão que, por vezes, transbordava a simples dedicação e dever de empregada. Vivia para satisfazer a bela viúva.
Depois de cada um dos sete funerais, a que Carlota assistira, essa entrega era maior. Preparava tudo com mais atenção e acrescentava pormenores que sabia agradarem à desconcertante viúva. Com o chá, preparava os biscoitos de quinoa que sabia serem os seus preferidos, para o banho perfumava a água e aquecia as toalhas de algodão branco e, no regresso ao quarto, aguardava-a com uma massagem de óleos quentes.

A cada peça de roupa caída sobre o chão de mármore negro e branco, Carlota apaixonava os seus olhos a cada curva do corpo da sua bela patroa. Deixava-se enredar pela pele perfeita e pelos seus cabelos longos e estonteantes caídos sobre as costas. Já conseguia sentir as suas mãos a deslizarem ao longo das pernas torneadas e a tocar-lhe as mamas com as pontas dos dedos. Imaginava o encontro do seu corpo com o corpo untado em óleo da sua patroa. Sabia bem que os corpos se aqueciam quando as mamas de ambas se encaixassem e se beijassem ardentemente. As línguas, trocadas entre apertadelas de nádegas e chupões de mamilos, preparavam os orgasmos contidos que ambas desejavam.
Finalmente, naquela noite de luto, a bela viúva deixou-se envolver pelo chá refinado de Carlota e entregou-se ao tesão de fornicar a sua jovem e atrevida criada. Enlouqueceram-se durante toda a noite numa luta de sexo e suor. De desejo e descoberta. Carlota, finalmente, saciou-se com a sua bela patroa.

Todas as noites em que a viúva dormia com os seus maridos, Carlota escutava os gemidos de prazer do seu quarto. Furiosa e de desejo atiçado, masturbava-se com os gritos da sua patroa e gritava com raiva para dentro. 
Prometia todas as noites, a si mesma, que um dia aqueles gemidos aconteceriam quando o seu corpo possuísse o da sua bela patroa. No dia em que a comesse toda a noite e esta gritasse cada vez mais, e mais por ser possuída. Depois de tanto tempo a invejar o lugar daqueles sete maridos, Carlota lá o alcançou.

Foram precisos sete chás, setes noites e matar sete homens para que isso um dia, finalmente, pudesse acontecer.





17.8.12

O fato da senhora M.



A senhora M. vestia todos os dias o mesmo fato. Vestia todos os dias o mesmo fato, há mais de quinze anos. E nesses quinze anos o seu fato já tinha estado ora apertado, ora folgado. Ora puído, ora lustroso. Nuns dias o fato parecia assentar-lhe na perfeição mas em muitos outros dias nem se conseguia olhar ao espelho. Achava aquele fato um truque de ilusionismo do qual não se conseguia livrar. Por vezes odiava-o e queria um novo mas não sabia como o conseguir. Angustiava-se. Sofria sozinha. Silenciava a dor. Sonhava que um dia acordava e tinha um fato novo. Ali mesmo, sem esforço. Mas no fundo do seu ser sabia que isso nunca iria acontecer. E então lá continuava, atormentada com a realidade, a tentar mudar qualquer coisa que fosse no seu fato, sem saber como. A dar-lhe a graça que não tinha.
Por vezes, a senhora M. ganhava coragem e lá se dispunha a fazer umas pequenas emendas no fato. Cortava ali, cozia acolá. Apertava de um lado, esticava para o outro. Mais umas pregas, umas bainhas e, por vezes, muito raramente, até parecia que a coisa se ia ajeitar. Mas a costura não era o seu condão e acabava por desarranjar o que parecia já estar bem alinhavado. Era trapalhona e não sabia cuidar bem do seu fato. Acabava a estragar, logo depois, o pouco que tinha conseguido fazer.
Uma coisa era certa: aquele fato não pertencia à senhora M. e a senhora M. nunca gostou daquele fato.
A cada dia que passava ganhava-lhe cada vez mais aversão. Queria acabar com ele. Queria sentir-se linda num fato novo. Fazer girar cabeças na rua. Soltar comentários elogiosos das bocas de homens e mulheres. Queria que vissem linda por fora, como sabia ser por dentro.

Um dia saiu à rua com o peito cheio de coragem para comprar outro fato. Voltou para casa, de braços rendidos e de tristeza desenhada no rosto. Desistiu de comprar o fato. Desistiu de mostrar uma coisa que não era.
Entregou-se ao inevitável. Passou o velho fato a ferro e voltou a vesti-lo. Continuou assim, infeliz, de braços estendidos, à espera que um dia alguém lhe veja a beleza, tal e qual como ela é.

O fato até podia ser medíocre, mas foi o único que a senhora M. teve, e aquele com o qual teve de aprender a viver.





9.8.12

Iogurtes de morango




Um dia acordas e percebes que afinal gostas de iogurte de morango. Percebes que estás disposto a fazer cedências em coisas que antes não abrias mão. Percebes que gostas de pickles de gengibre quando não sabias bem porque razão comias uma coisa que sabe a amoníaco. Não te dás conta que te ris de coisas estúpidas, simplesmente, porque estás em estado de estupidificação total. Não te apercebes que acordas a sorrir e te tornas, estranhamente, simpático para toda a gente. Que nunca te enervas com nada e até fazes conversa de circunstâncias com outras pessoas na fila de supermercado. 
Começas a perceber, aos poucos, que tudo à tua volta corre bem e que isso só acontece porque é isso que dás aos que estão à tua volta também. E pouco depois percebes que é tão bom receber aquilo que  dás, que não entendes porque não o fizeste sempre. Depois cais em ti e percebes. Percebes que estás  lambuzado de gelados e iogurtes de morango na cara, como ainda não tinhas estado. Percebes que isto de gostar de iogurtes de morango é do melhor que há e que os vais querer comer até ao fim dos teus dias.
Um dia acordas, pensas melhor no teu futuro, e percebes que queres passar o resto da tua vida com aquele sorriso parvo na cara. Que mesmo que envelheças que nem uma cavaca seca, vais querer ter sempre aquele açúcar por cima. Que vais querer envelhecer. Que já não vais ter medo de envelhecer. Que a única coisa que vais mesmo querer é envelhecer, porque só assim podes ter tempo para usufruir de todos os iogurtes e gelados. Porque só assim podes ganhar tempo. Porque só assim tens razões para querer acordar. Todos os dias.

E nesse dia, em que acordas e percebes que afinal gostas de iogurtes de morango... está tudo estragado.

Descobres que os vais comer para o resto da vida e que, o resto da vida, é muito tempo. Descobres que esse imenso tempo pode não sê-lo para ti mas pode sê-lo para alguém. Descobres que não vais querer morrer nunca. Nem tu nem a pessoa com quem divides os iogurtes de morango. Descobres que a vida plena de iogurtes de tutti-frutti afinal não vai acontecer. Mudas de planos e de estratégia porque, de repente, as prioridades se inverteram todas. Vais descobrir que devíamos ser imortais para passarmos a eternidade dos fins de tarde a passear de mãos dadas e a comer gelados. Que não importa que aos 30 prefiras um cone de bolacha e aos 80 prefiras um copo com colher, desde que o sabor do gelado seja igual. Que o que importa é que te rias de ti e do outro de cada vez que se olharem de frente e não denunciarem que o gelado vos apalhaça a cara. Que o importante é que, todos os dias, ao meterem a cabeça na almofada, mesmo que não se beijem, ao fecharem os olhos, conheçam o sabor dos lábios um do outro de cor. 

E nesse dia, em que adormeces e percebes que já não vives sem iogurtes de morango... está tudo estragado.


Olá. Já sabes como me chamo. Já sabes que gosto de ti. 
E ainda não sabes mas quero dizer-to agora: gosto muito de iogurtes de morangos. 
De Cornetos é que nem por isso, mas alinho num de nata.





3.8.12

O Breu


Uma mulher prostrada.
O traje preto de mortificação.
O olhar vago no escuro.
A tristeza assombrada.
A vaguidão.
A vaguidão daquela alma.
A vaguidão desta mulher.

As sombras amaldiçoadas.
As outras almas sentidas.
O penar de quem não sabe.
O sentimento oco de quem não sente.
O pesar.
O pesar de quem a olha.
O pesar de quem não tem o que consolar.

O ébano da morte.
O bater de asas de corvos.
As roupas puídas de velho.
As mãos consumidas de sofrimento.
A pele.
A pele negra.
A pele morta.

Um caixão triste.
Uma morte esperada.
Um sonho que acabou.
A paixão não consumada.
O agror.
O agror de ter acreditado.
O agror de o sepultar.

O azeviche da noite.
O breu de um rastejar.
O medo de prosseguir.
O horror de quem desistiu de amar.
O caminho.
O caminho que perdeu.
O caminho que já não consegue encontrar.

A escuridão dos pensamentos.
As incertezas do fim.
Um fim sem se esperar.
As lágrimas de saudade a rondar.
O negro do sofrer.
O apagar da luz.
O adeus.
O adeus que não se fez.
O amor que não se consumou.


O adeus que não se fez.
O amor que não se consumou.

O adeus que não se fez.
O amor que não se consumou.




2.8.12

O meu coração. As tuas artérias. O nosso sangue.


Do meu Coração


O meu coração andava moribundo. Sem pinga de sangue nem fulgor. Corria-me pelas veias, solitário, para lá e para cá, sem emoção. Sem destino. Perdido. Corria-me pelo corpo, acabado, pálido, como rios e ribeiros que se tornam lentos até se sumirem. Que se esgotam num fiozinho, até secarem.
Ao meu coração faltava rumo e corrente. Faltava força e vontade de querer. Andava fraco, quase morto, porque não queria bater. 
Os meus rios e ribeiros procuravam um local para desaguar onde sentissem que, no encontro com outras águas, não existiria o doce ou o salgado. Que as suas águas doces se iriam juntar a um imenso mar salgado e, de repente, seriam um só. Este coração, morto e sem sangue, apenas o era porque não encontrava um mar forte e corajoso que o fizesse viver. Era apenas um coração sozinho sem caminhos para alguém lá chegar. Era um coração desligado das artérias que o fazem bombear. 

Das tuas Artérias

No teu corpo, o mais tumultuoso dos mares sobrevive. Vive em ti esse sangue salgado e inóspito. Revoltoso e indignado. Vives forte e aceitando sempre o avanço das marés, sem medo que a maré te vire o barco. Enfrentas, de peito feito, o ardiloso destino que o teu sangue te reservou. Os caminhos por ele percorridos, cheios de abismos e obstáculos, parecem fáceis às muitas lutas travadas. Lutas silenciosas e solitárias que gritavam por companhia. Lutavam por chegar a um lugar que desconhecias mas sabias querer alcançar. Subias a pulso todas as margens das tuas artérias para desaguar num desconhecido lugar. Subias a pulso por saberes que o melhor estava por concretizar. Desconhecias-me o coração mas soubeste sempre que não havia outro para conquistar.
Na chegada do teu sangue ao meu coração, a máquina começou a funcionar.

Faremos o Nosso Sangue

Um dia a bravura da tua corrente lutou para chegar até mim. Remaste contra esse mar que vive dentro das tuas artérias para me chegares ao coração. As tuas artérias ligaram-se a mim. Abraçaram-me o coração e uniram esse mar salgado, aos meus rios e ribeiros de águas doces.
Ao galgar as margens das tuas artérias, esse sangue audaz soube invadir o meu coração. Arrebatou-me e casou-se comigo num dia inesperado. O teu sangue ultrapassou todas as margens e entrou por esta casa abandonada, desenfreado, arrombando-lhe a porta sem medo. Percorreu-lhe todos os caminhos e instalou-se para sempre na mais nobre das divisões. Chegaste ao meu coração e sentaste-te no trono que há muito era teu. Aguardava por ti sozinha, na certeza de que um dia ias chegar. 

O meu coração bate agora com vida, porque as tuas artérias lhe trouxeram um futuro inteiro.