27.8.14

25 de Abril... às vezes



Todos os dias tento fazer um 25 de Abril.




Questiono-me, sempre, ao final de cada dia: Para quê?




25.8.14

A Grande Casa





Havia uma grande casa onde morava muita gente. Uns conheciam-se, outros não. Havia casos de pessoas que eram familiares entre si, de amigos que eram bons amigos e de outros amigos que eram apenas conhecidos. Mas também havia os que não simpatizavam com este ou aquele, e havia também aqueles que não gostavam de ninguém. Também habitavam na grande casa os que diziam que gostavam de toda  gente mas o "toda a gente" eram apenas eles próprios. Havia os altruístas e os egoístas mas os egoístas eram mais. Depois havia os porreiros, para quem estava sempre tudo bem, e havia os paranóicos, para quem havia sempre alguma coisa mal. Também habitava na casa uma ou outra pessoa invisível: "Quem?", "Faz o quê?", "Chama-se como?"... "Ah, pois. Não estou a ver quem é". E havia os distraídos.
Na grande casa, uns diziam, com orgulho, que eram todos uma grande família. Outros, mais conscientes, fugiam do convívio e recusavam afinidades. Eram os surdos, os cegos e os mudos. Mas não eram burros. Mas também os havia, os burros. Estavam na parte da alta da casa. Eram arrumados na parte mais alta da casa para não incomodarem os outros, ainda que eles pensassem que estavam na parte alta da casa por serem muito importantes. Mas não eram. Eram burros e ninguém os queria aturar.
Depois, havia aquele punhado de gente que arrumava, limpava, organizava, que mandava na casa, que a punha a funcionar, mas cujo nome ninguém sabia. Só sabiam, e era consensual, que eram necessários à casa. Como formigas obreiras. São precisas mas se alguma morrer depressa se substitui. Afinal, são todas iguais.
Na casa grande onde morava muita gente, podiam não saber os nomes uns dos outros, nem o que faziam, mas os habitantes da grande casa conheciam as muitas regras que ao longo dos anos se instituíram. Mas havia um problema: uns cumpriam-nas e outros não. A primeira regra, por exemplo, sabiam-na na ponta da língua: não era permitido entrar mais ninguém na grande casa. Recebiam-se visitas à porta, aceitavam-se cartas, de quando em vez até se admitia um presente, de uma alma mais misantropa, mas nunca, nunca, as regras admitiram que estranhos se instalassem na grande casa. Mas era sabido que esta regra há muito que demorava a vingar e que nem sempre havia sido cumprida. Pelos mais velhos. Os mais velhos da casa, antes da casa grande ter muita gente lá dentro, gostavam de receber visitas, de lhes aceitar os favores e de retribuir com favores também. Faziam-se festas e arraiais, fizeram-se negócios, compraram-se segredos, e venderam-se almas. Tudo dentro das muitas paredes da grande casa.
Os velhos estavam tão habituados a fazer tudo dentro da casa, que acabaram por se esquecer que as muitas paredes que os escondiam também tinham muitos recantos que os expunham. Muitas esquinas pontiagudas que juntavam sujidade que se acumulou por anos, e anos... Estavam tão confortáveis que nem repararam que os mais novos da casa, avessos a velhos hábitos, começaram aos poucos a limpar o pó. A arrumar os móveis. A sacudir os cortinados. E a encontrar os segredos, debaixo dos tapetes.
Um dia, quando os mais novos já estavam cansados de limpar o que os mais velhos continuavam a sujar, gerou-se um motim. E os mais velhos não compreendiam. Não percebiam o que tinha de mal. Quiseram convencer os novos que as vendas da alma tinham de se perpetuar. Como uma herança. Como um ritual.
Mas os mais novos recusaram vender-se e a sentença ficou lida: "A grande casa ficou pequena para vocês. Não são mais bem-vindos aqui".

Os mais novos não choraram.
Encheram o peito de orgulho e seguiram o seu caminho.
Com a alma, intacta, que não venderam.



21.8.14

Letargia



le·tar·gi·a 
substantivo feminino

1. Sono profundo em que a circulação e a respiração parecem estar suspensas.
2. [Figurado]  Apatiaindolência extrema.



Como podes deixar-te entregue a esse corpo que não vive?
Que não se ressuscita.
Como podes viver de olhos no chão entregue ao nada?
Como te suportas ao fim de um dia, dos longos dias, a viver só dentro de ti?
Consegues respirar?
Queres respirar?
Porque não te entregas de braços abertos ao mundo?
Porque não experimentas o amor?
Porque te condenas a não viver?
Gostas do silêncio.
Gostas da escuridão.
Gostas da solidão.
Gostas só de ti.
Porquê?
Porquê?
Porquê?
Porquê?
Não vês que a vida está aí?
Nessas coisas que matas com o olhar.
Nos livros que não queres ler.
Na música que não queres ouvir.
No ritmo que não queres dançar.
Nas notas que não queres entoar.
No toque que não queres tocar.
No beijo que não queres dar.
No ar que não queres respirar.
Que compaixão é essa que tens por ti?
Que desapego é esse que cultivas?
Que complacência é essa que alimentas na tua casa?
Tens orgulho em ti?
Nessa inércia?
Nessa vida que não tens?
Como podes deixar-te entregue a esse corpo que não vive?
Que não se ressuscita.
Não vês que mesmo que morras, ninguém quererá saber de ti?
Ou pensas que alguém te virá salvar?
Que alguém perguntará se já acordaste hoje?
Que alguém te virá ler ao ouvido, cantar-te uma música, e beijar-te os lábios?
Que alguém te vai dar a conhecer o mundo, a correr estradas, a cair num poço de ar?
Achas mesmo que alguém te vai despertar?
Achas mesmo que alguém te irá resgatar ?

Que sono profundo é esse onde cegaste e de onde já não mais queres acordar?



18.8.14

Estranhezas dos pensamentos de Verão





Tantas coisas para dizer durante esta minha ausência...
Tantos pensamentos, tantas conclusões e tão pouco papel e caneta para ir apontado coisas que acabaram por se desvanecer com o tempo.
De facto, a realidade há-de ser sempre o maior motor para a inspiração. E há sítios mais reais que outros. Por estes dias estive num desses lugares em que a realidade é, parolamente, mais dolorosa que no resto do mundo. Estou em crer que sim. E até pode ser divertido mas, depois de tantos dias, qual roda de hamster, começa a ser repetitivo e o cérebro começa a pensar em coisas sobre as quais nunca se tinha debruçado e, às tantas, já não sabemos se são alucinações  dos olhos ou rasteiras do cérebro.
E só continuamos a pensar cada vez mais e mais...

Pensei, para começar, mais uma vez nisto da solidão (claro!... boring...) mesmo estando-se rodeado de gente (aquele velho tema que, em algum momento da vida, todos conheceremos), e no sentido que faz entregarmo-nos à dor da solidão estando mal acompanhados, resignarmo-nos, quando podemos ser mais felizes sozinhos. Questionei que tipo de penitência é esta a que as pessoas se impõem? Mas, depois, também vi muitas pessoas sozinhas, e que me pareciam imensamente infelizes com isso. Pensei: haverá um ponto de equilíbrio?

Pensei, também, no Miguel Esteves Cardoso (e eu até lhe pedia perdão por isto mas haverão, certamente, coisas que o ralem mais do que pensar no facto de eu ter pensado em si), e nas coisas que escreve e porque é que umas são tão clarividentes e aconchegantes, por serem tão próximas da mortalidade de qualquer um, e porque é que depois se espalha ao comprido em coisas sem sentido nenhum e que não interessam, verdadeiramente, a ninguém. E eu perco-me ali naquela esquizofrenia e depois, estranhamente, isso faz-me sentir bem e volto a gostar do Miguel Esteves Cardoso e do que escreve e do que vai naquela cabeça contaminada de mundo.

Pensei, depois, nas dietas e em como tanta propaganda a sementes, batidos e cenas Detox não anda, claramente, a chegar a um público assim tão alargado como se pensa, e basta ir à praia para confirmar isto. Pensei na democracia dos biquínis, e em como não há nada a esconder com um biquíni vestido e em como, supostamente, somos todos iguais, ali, expostos sem roupa, e também sem classe social, sem educação ou formação, sem religião, sem nacionalidade, sem clubes nem partidos. Somos todos iguais para o bem e para o mal. A única coisa que nos distingue quando nos expomos num biquíni é o bom-senso, ou falta dele. E isto levou-me a pensar em como, estranhamente, as mulheres parecem não querer esconder nada quando chega a hora de ir para a praia. Pensei: somos fodidas. Durante um ano inteiro, queixamo-nos que estamos gordas e que não podemos comer isto e aquilo. Andamos um ano a queixar-nos que não podemos usar leggings indiscriminadamente porque se vê isto e aquilo, que não podemos usar blusas sem soutien porque se nota isto e aquilo, que não podemos comer uma dúzia de lasanhas por semana porque se vai notar isto e aquilo, e depois... Depois chegamos à praia e vestimos um biquíni (que nalguns casos parece ser engolido pelo próprio corpo), malhamos todos os dias, orgulhosamente, uma bola-de-berlim (ou berlinde, como ouvi ao balcão de um café - priceless!) como se por estarmos na praia elas não engordassem, e ainda nos damos ao desplante de dar uma caminhada pela beira-mar (coisas que nos recusamos a fazer durante o ano porque cansa muito) para nos verem bem o corpo de hibernação que conseguimos durante um inverno rigoroso. E é, também, por isto que cada vez compreendo menos as pessoas, e muito menos as mulheres. Também descobri que os fatos-de-banho foram peças que caíram em desgraça nas graças de muitas senhoras que deveriam reconsiderar o seu regresso.

Depois parei para pensar nos homens, e não precisei de dois minutos para concluir que usam o que lhes apetece, podem engordar que nem uns ursos, e usar tangas ridículas (não sungas) tiradas da arca do enxoval de 1984, que ninguém quer saber. Está tudo bem. Menos os olhinhos das pessoas.

Pensei, finalmente, no quão fartos os pais estão de ser pais. Ou no quão infelizes os pais descobriram que podiam ser depois do sonho que idealizaram que seria a paternidade. A falta de paciência e a agressividade latente no vocabulário, na linguagem não verbal, nos movimentos do corpo. Vê-se: a maioria da pessoas com que me cruzei, odeia ser pai, está farto dos filhos, odeia as obrigações e já não vê prazer nenhum na rotina e na vida com crianças. A educação passou a ser sinónimo de repreensão e ninguém se dá ao trabalho de dar um beijo nos filhos, um abraço, de rir com as crianças, de as elogiar, de dizer "a mamã e o papá gostam muito de ti". Não se incentiva, minimamente, o amor, os afectos, e só vi semearem um futuro muito incerto no que às relações pais/filhos diz respeito. Só vi pais a criarem filhos inseguros, com medos, ou desprovidos da noção de afecto. E um dia a factura vai ser cobrada e depois ninguém vai perceber porque é que o valor é tão alto. Estou só a dizer... Fiquei preocupada e ao mesmo tempo fez-me pensar que, se um dia for mãe, terei de regressar mentalmente muitas vezes a estes dias e reflectir sobre que mãe quero ser e que filhos quero criar.  Se vou querer passar o dia a repreendê-los, a chatear-me e a criar um fosso emocional entre nós, ou se, em vez disso, me encho de paciência, conto até dez, pego nos putos pela mão, levo-os à beira-mar, e finjo que gosto muito de brincar aos castelos de areia, de ganhar um Kilimanjaro de areia no pipi, e de apanhar escaldões nas costas por andar sempre vergada a agarrá-los. Metáfora parva que espero me sirva para muitas coisas na vida. E espero nunca me esquecer disto. Nunca.
Não pude deixar de pensar, também, em como muitos destes pais se queixam o ano inteiro que não têm tempo para os miúdos. Que se lamentam que o tempo que lhes resta depois do trabalho é para lhes dar banho e de comer e que no dia a seguir volta tudo ao mesmo e que os anos passam-se e os miúdos crescem e nunca tiveram tempo de qualidade para os mimar.
As conclusões estão na minha cabeça mas prefiro nem verbalizar porque acho que todos chegamos lá.


E pronto, mais coisa menos coisa foi isto. Houve, portanto, todo um alinhamento de pensamentos muito coerente e também isso me dá que pensar.


(E, foda-se, que vim mais disléxica que nunca das férias e este texto demorou mais horas a escrever e a corrigir que a bíblia a ser lida em mandarim por um gago).


7.8.14

Duas versões. A mesma história.





Não será sempre assim?




5.8.14

Maria


David Bellemère


Bela serias sem o senão,
Maria, filha de pais bentos,
Irmã de um pouco santo irmão,
Desconcertas olhares,
Sabendo-os olhares de descontento.

Fosses tu ó Maria,
Mulher de triste envergadura,
Ninguém de frente te olharia,
À tua passagem ondulante,
Não despertarias invejas e amargura.

Se outras mulheres te enxergassem,
Bem sabes tu no que daria.
Os seus homens andariam tortos,
De olhos vesgos entesados,
Sonhariam seres tu, ó Maria!

Perde-te pelos pecados escabrosos,
Não te quedes a quem te maldizer.
Aproveita os homens das outras,
Não tenhas pressas em ter um teu,
Um só homem na vida só nos faz sofrer.

Pelas mãos do pecado nasceste,
Nas terras sujas hás-de morrer.
Aproveita o calor dos corpos Maria,
Enquanto a vida tem o que viver.