29.3.12

Vende-se


Maria Domitília
21/02/1915 - 29/03/2002

A antiga proprietária era senhora idosa. 
Sem filhos, não fumadora, e sem animais domésticos. 
A campa resiste bem às humidades e às temperaturas. Já tem contador da luz, e contrato válido com a EDP. A torneira da água fica a menos de 10 metros. Virada a Sul, tem boa exposição solar. Boa vizinhança. Localizado em rua de jazigos de família. Nunca foi assaltada ou vandalizada. Podem ficar com os vasos e as flores de plástico. 
Esta campa vende-se.


"Querida prima, envio-te este anúncio de uma campa que está à venda, aqui mesmo no cemitério da aldeia, perto da casa da mulher do Zé da loja. Devo dizer-te que é um negócio de confiança e até falei com o coveiro para saber em que estado estava a dita campa. Garanto-te que não vamos arranjar melhor por estas bandas. A Dona Domitília era uma senhora séria e muito respeitada por todos. Não que me lembre dela, porque eu podia bem ser sua filha, mas o coveiro garantiu-me que era boa senhora. Prima, olha que me garantiu! E o homem é gente de bem, que isto de lidar com os mortos nunca deu para fazer o mal a ninguém. 
O único problema é que a velhota não teve quem cuidasse da campa por não ter família chegada. Coitada, como se costuma dizer, morreu como viveu, e é bem verdade. A senhora, de tão séria que foi, nem nunca arranjou homem e, por isso, também nunca procriou. Diz-se que era seca por dentro como era por fora. Coitada! Mas mesmo assim eu não estava descansada enquanto não soubesse bem de onde apareceu este achado e porque é que ainda ninguém lhe pegou. Cheguei a pensar que tivesse embruxada a campa. Mas o coveiro lá foi dizendo os predicados em vida de Dona Domitília. Garantiu-me prima, olha que me garantiu, que era uma velhinha não fumadora, que comia bem e não gostava de gatos. Cheia de regras enquanto foi viva, levou o rigor com ela para o caixão, podes ter a certeza, que a mulher tratou de tudo antes de morrer. Olha que o caixão, apesar de ter forro em pele nunca gretou. Apesar de as pegas serem em aço inox da melhor qualidade, olha que este nunca ficou manchado. E que a madeira apesar de ser de excelentes carvalhos, nem nunca ganhou bicho e o verniz nem estalou. Prima, olha que isto nem chega a ser normal. Pensa bem, que foi como eu pensei: para não acontecer nada à urna nestes dez anos, é porque a campa é mesmo boa. Prima, ouve o que te digo, que negócios destes não se encontram todos os dias. O coveiro até me disse que era como aqueles carros de luxo que se vêem na televisão, ou como o carro do Joaquim António, aquele amarelo que ele trás quando vem de férias da Suíça. O coveiro falou-me que, faz de conta, que esta campa tem ar condicionado de origem e que era quase como uma campa de garagem... O coveiro só aguenta o que faz porque o tinto está barato, bem o sei, mas é bom rapaz e esqueci-lhe as brincadeiras sobre a campa. 
Prima, ouve o que te digo. É bom negócio. Portanto se quiseres comprar já te digo que o preço também é de aproveitar. São apenas trinta e três euros e meio por mês durante meia dúzia de anos, e se vieres assinar os papeis antes da Páscoa ganhas ainda um conjunto de cães de loiça, mas podes dá-los ao Joaquim António que ele há-de gostar. Por isso, prima, não demores em pensamentos que ainda perdes esta oportunidade.
Vê se te apressas a dar conta do bandalho do teu marido antes que o coveiro venda a campa a outro cão ainda maior que o teu.

Cumprimentos da gente todos cá de casa e espero que estejas bem de saúde.

Fica com um beijo meu, 
a tua prima Elisa."



20.3.12

Os mutilados



O Pedro não tem cabelo. O Sérgio não tem uma perna. O João não tem cérebro. O Miguel não tem dentes. O Henrique não tem pénis. O Cláudio não tem coração. O Rui não tem boca. O Ricardo não tem ouvidos. O Rafael não tem coluna. O Jorge não tem olhos. O Tiago não tem estômago. O Nuno não tem garganta. O Frederico não tem rosto. O José não tem sangue. O Bruno não tem fígado. O Luís não tem pés. O Paulo não tem bexiga. O Gonçalo não tem unhas. O Joaquim não tem apêndice. O Mário não tem nariz. O Marco não tem vesícula. O Nelson não tem língua. O Manuel não tem mãos. O Daniel não tem tomates.


Se todos juntos não fazem um, porque é que me exigem que eu, sozinha, seja completa?

A resposta a isto pode ser simples e facilmente explicada pela psicologia, naquelas questões da falta de amor do pai e da mãe e das imensas exigências  que a sociedade exerce actualmente sobre nós. Essa teorias dão quase sempre para tudo e desculpabilizam grande parte das anormalidades que se fazem e dizem e, sobretudo, desculpam as deformações e desvios de personalidade de alguns indivíduos.
Não ter unhas para agarrar uma oportunidade pode ser visto como falta de empenho, de tenacidade ou, simplesmente, de preguiça. E isso não incomoda terceiros, apenas atraso o próprio. Eventualmente poderá deixar alguém desiludido por notar a falta de vontade e um rasto de desistência. Mas ter falta de tomates já é outra coisa, e sabemos bem o quê! E isso, sim, pode ter implicações junto dos outros. Pode arruinar a esperança de alguém, saber a traição ou denunciar uma cobardia inesperada. Isto pode magoar.  Isso pode revoltar.
Ter falta de coluna vertebral, de cérebro e de sangue mostra como um indivíduo pode ser, efectivamente, mal formado ou ter maus princípios - e até maus fins. Esses são aqueles que, felizmente, até escasseiam e não definem em nada a maioria dos seres humanos. Todos nós tendemos a desprezar estas pessoas e a saber analisar que não valem grande esforço e nem devem pertencer ao nosso grupo de relacionamentos.
Mas o problema não está em ter falta de apenas uma destas coisas. O problema está na falta de auto-análise e reflexão que algumas pessoas têm em relação a isto. Eu nem condeno quem seja desprovido de algum dos órgãos ou sentidos porque eu também não os tenho na plenitude, mas raios!
Que mania temos todos de nós de nos sentirmos no direito de o exigir aos outros. Que altivez é a do homem em querer dos outros a perfeição que ele próprio não alcança?





19.3.12

Os pais. Os criadores. Os desertores.



Pode-se estar de várias maneiras no papel de pai. Pode-se estar ou não estar. E isto é apenas uma das coisas que me fascina na condição de ser pai. Acho um encanto a liberdade de um homem comer uma mulher, fazer-lhe um filho e depois largá-lo no mundo, à sorte de quem o quiser criar e amar. Isto é cena de homem valente. Isto é coisa de macho encartado. Isso, ou de um grandessíssimo cobarde irresponsável que não quer assumir nas mãos uma vida que ajudou a nascer. Esse tipo de pai é aquele que me deixa descansada porque, quase sempre, o destino não se esquece desta gente e, mais tarde ou mais cedo, têm o amor que merecem (estou a ser irónica, caso não tenham percebido).
Abandonar a experiência de ser pai, ou abandonar um filho não tem que ver apenas com a ausência física. Muitos destes pais estão em casa, metidos nas mesmas quatro paredes que os seus filhos. Metidos apenas na vida deles e a fazerem-se de autistas com o que os rodeia. O pior amor que não se recebe de um pai, é aquele que está logo alí à mão mas por um centímetro não conseguimos tocar. São aqueles pais que não vêem os filhos gritarem por amor. São os que tapam os olhos para não verem que eles existem. Não raras vezes são estes pais que, apesar de terem proporcionado todos os traumas aos filhos, acabaram por criar seres lutadores, por estes perceberem que não é o exemplo que têm em casa, aquele que querem seguir.

Depois há aqueles paizinhos lamechas. Aqueles que querem ver as mulheres a parir e lhes agarram a mão enquanto elas se desgoelam em gritos. Aqueles que vão às aulas de preparação para o parto e praticam as respirações de Lamaze a caminho do trabalho. São aquele tipo de pais que vão meter os meninos todos os dias à porta da escola e os ensinam a não socializar com ninguém, porque ninguém é suficientemente bom e perfeito para falar com o seu filhinho. São aqueles pais que não falham em nada na presença física mas falham em tudo na presença de espírito. Não ensinam um miúdo a fazer-se homem ou mulher. Não os ensinam a defender-se no recreio com uns pontapés e umas dentadas. Ensinam, antes, os filhos a serem perfeitos, num mundo que não o é. Num futuro próximo as criancinhas vão-se sentindo frustradas e desamparadas na realidade e vão olhar para os pais, para todo sempre, como o único lugar seguro que conhecem. Nunca vão querer sair de casa, vão criar fobias sociais, vão gostar de pullovers  aos losangos e irão masturbar-se a olhar para imagens da Anita. Mas nada de preocupações: afinal foram criados à imagem daquilo que os pais consideravam perfeito. Ficam uns bananas. Mas uns bananas de acordo com as regras de Deus e da sociedade dita decente.

Também há daqueles pais que acham que ser um pai às direitas é ser o melhor amigo do filho. São aqueles pais que gostam de elogiar o tamanho da pila do filho (igual á do pai, claro!) quando ele ainda nem sabe que a tem. São do tipo de pais que gostavam, eles próprios, de ter sido manequins, desportista ou, simplesmente, um gajo-todo-bom desejado por todas as mulheres. Incutem no espírito dos filhos que não é preciso fazer-se muito na vida para se chegar onde se quer. Que o importante alcança-se pela imagem que apresenta e pelo carro que conduz - mesmo que não tenha intenção de o pagar - e pela roupa de marcas que enverga. É mesmo o género de paizinho que mete o carro nas unhas do puto de 16 anos só para lhe dizer que confia nele e em jeito de quem diz "somos os melhores amigos, pá!", mesmo que isso condene a vida do miúdo contra uma estrada de alcatrão.

Finalmente, existe um grande grupo de pais que, por fazerem o melhor que sabem e podem mas, sobretudo, por se esforçarem mais e mais a cada dia, e por se lembrarem que também eles já foram miúdos e ambicionavam determinados comportamentos dos pais... não se esquecem que o seu papel é, precisamente, ser pai! Ser pai. Educador. Amigo. Confidente. Companheiro. Mas também meter regras e dar educação, com tudo o que isso possa dar que sofrer às duas partes. Por vezes é preciso sangrar determinados males para dar lugar a um processo de cura. Esses pais são os que amam incondicionalmente, mesmo que não o digam todos os dias. São aqueles que vão levar os miúdos à escola mas ficam ao longe a ver se entram, sem interferir. São os que levam os filhos ao parque, ao cinema e às festas de anos dos amiguinhos, para que eles não sejam uns retardados mentais com medo deles próprios, dos outros e do mundo em geral. São aqueles pais que ensinam os valores importantes e reais da vida, mesmo quando as conversas parecem chatas. Os que ensinam que para se ser feliz e realizado não se precisa de trepar por ninguém. Que o que ganhámos com honra tem de ser pelo próprio esforço. Mas são também aqueles que quando os filhos não conseguem alcançar as coisas pelos próprios meios, sabem dar o empurrãozinho. Sabem dar moral. Sabem acreditar. Estes pais, que acredito abundarem por aí, são os que mais se esforçam no seu interior mas menos manifestam pelo exterior. Porque não precisam. Porque o importante não é exibirem aos outros tudo o que dão, são e querem para os filhos. Porque o processo de paternalização destes pais, é semelhante ao das mães quando o filho ainda se desenvolve no ventre. Criam laços viscerais e emocionais mas já fora da barriga. Estes pais, não os criaram dentro de si mas não se teriam importado de viver essa experiência, porque sabem que, mais duro que carregar um filho nove meses na barriga, é andar com ele ao colo uma vida inteira.

Ninguém disse que isto de ser pai era fácil pois não? Então porque é que há pessoas que insistem em correr maratonas quando não têm pernas para elas? Porque bem sabemos que não é corredor quem quer, mas quem se propõem a isso. Tal como ser pai não é quem procria mas quem dá a criação.

Feliz Dia do Pai... para quem o merecer.




17.3.12

O Móbile



O Móbile
Na escultura, o móbile é um modelo abstrato que tem peças móveis, impulsionadas por motores ou pela força natural das correntes de ar. Suas partes giratórias criam uma experiência visual de dimensões e formas em constante equilíbrio. O móbile foi inicialmente sugerido por Marcel Duchamp para uma exibição de 1932, em Paris, sobre certas obras de Alexander Calder, que se converteu no maior exponente da escultura móbile. 

In Wikipédia


A Vida
Na vida, os dias são modelos abstractos que têm momentos variáveis, impulsionados por forças exteriores ou pela nossa força mental, muitas vezes cheia de correntes de ar. As partes giratórias desses dias criam uma experiência real de dimensões e formas em constante desequilíbrio. Os dias foram inicialmente sugeridos por Deus - Nosso Senhor Jesus Cristo - para uma exibição no dia do Bing Bang, sobre certas obras do Diabo - Lúcifer Satã do Capeta - que se converteu no maior exponente em lixar os dias a uma pessoa.





13.3.12

E tu? Viveste?




Nunca te aconteceu? Nunca te aconteceu morreres de amores? Viveres apaixonado? Sentires tudo intensamente? Viveres com o coração na boca? Viveres com o coração fora do peito? Exposto às facadas, às euforias e às agressões? Nunca ficaste sem respirar porque o ar não te chegava? Porque o ar gelou com as palpitações intensas? Nunca sentiste aquele nervoso que te dá formigueiro na ponta dos dedos? E nos lábios? Nunca sentiste os lábios tremerem de paixão? Nunca sentiste os lábios secos de ansiedade? E as mãos adormecidas? Nunca sentiste que as mãos se iam descolar dos pulsos, por o ritmo ser diferente? E geladas? Ou a arder? Sim, já sentiste as mãos geladas ou em brasa até fazerem doer? Já sentistes as mãos e as orelhas destemperadas? E a barriga em convulsões? Já tiveste? E o estômago revolto e com palpitações? Nunca sentiste aquela embriaguez que chega aos olhos? Aquela que deixa os olhos turvos quando sente mais emoções? Nunca ouviste coisas que não diziam apenas porque querias muito ouvi-las? Sabes o que é ouvir “amo-te” da boca de outra pessoa? Sabes? Sabes o bom que é? Sabes o bem que sabe? Sabes o bem que faz? Sabes a vida que nos dá?

Nunca o sentiste? Nunca te aconteceu? Nunca o tiveste? Nunca o experimentaste? Nunca to deram? Não?

Foda-se! Então não viveste.




12.3.12

Morrer em Lisboa



Em 1932, a pequena Donzília chegara à estação de Santa Apolónia, vinda do norte do país, pelas mãos dos seus pais e de uma velha avó materna. O momento ficaria para sempre marcado por uma azáfama que não conhecia mas lhe animou o pulso. As longas horas de comboio, o corrupio de malas, a correria das pessoas pela gare, o bater de asas afoito dos pombos, o fumo das castanhas assadas à porta da estação, o rio... O rio. Ahhhh, aquele rio. O rosto embeveceu-se-lhe de espanto! Reteve sempre a imagem do rio. Nas muitas vezes que havia de contar a sua história da chegada a Lisboa, havia de começar sempre pelo rio e só depois relataria os anos que antecederam aquele momento, e os que lhe seguiriam. Como a saída de Braga com a família, forçada pelos curtos tostões, e os anos que conquistou pela capital, com todas as venturas e desventuras que encarou. Com todas as tropelias que a fizeram chegar a mulher de prumo alinhado.
A menina Donzília cresceu no ofício de serviçal em casa de uns senhores ricos e mais tarde abraçaria a arte de costurar - herdada pelo gosto de sua mãe e de sua avó, mais que a tarefa de servir com os modos finos com os quais não tinha nascido. Apesar de lhe ter servido de polimento à rudeza que lhe corria no sangue, não lhe bastou servir os outros para se querer tornar senhora. Como aquelas que via passear pelas avenidas novas ou as que se sentavam nos bancos do Jardim da Estrela a comer um gelado de glacé, enquanto se distraiam em risinhos e conversas informais com as amigas.
Donzília havia de se integrar na cidade, pela qual se apaixonou no primeiro piscar de olhos ao rio, e parecer uma das muitas jovens senhoritas que não contavam os tostões para mandar fazer um vestido novo ou comprar uma capeline de feltro. Na busca por essa vida confortável, a costureira soube amealhar o conforto de uma vida parca mas feliz. Não lhe faltou nada nos limites do razoável. Faltaram-lhe os amores e também os filhos, que gostaria de ter tido para educar e levar a passear à Feira Popular. Faltaram-lhe os laços de uma família criada por si e acabou envelhecendo em toda a dignidade da solidão. Com o passar dos anos, e a chegada do peso às pernas, já não se permitiam agora as muitas viagens de outrora, cima-abaixo, feitas à sua habitação num penoso 4º andar, e por isso as saídas começaram a rarear. Contingências da vida! Bem o sabia. Nestas alturas a mente afundava-se na tal família que não construiu, e imaginava quão diferente podia ser aquela solidão se os muitos filhos e netos, que gostaria de ter tido, a visitassem. Talvez pudesse voltar ao Jardim da Estrela se um par de braços a ajudassem a descer do seu 4º andar. Mas não os tinha e, ao abrir de olhos, realizava-o de forma conformada e condescendente.
Quando se sentava no seu velho cadeirão de veludo, em tons de bege já coçado, e o sol lhe surripiava o rosto por entre as cortinas de musselina, transportava-se mais uma vez até à margem do rio, imaginando que os seus reflexos prateados e a brisa fresca lhe limpavam as faces e acalmavam as rugas. Ficava ali, entregue ao calor reconfortante do sol da manhã, aquecido pelos vidros velhos das janelas.
Num dia, esse agasalho que eram as imagens do passado e aquele sol de tons torrados, acarinharam-lhe tanto o corpo que a alma se desprendeu. Ficou-se tão sossegadamente no velho cadeirão que a sua expressão parecia a de se ter deliciado com uma sesta numa tarde de Domingo.
A D.ª Donzília, do 4º- Esquerdo, deixou vago um apartamento sem herdeiros. Ninguém brigou por bens e teve o funeral digno e modesto que a vida justamente lhe retribuiu.
As flores nunca haveriam de abundar porque a família, distante em Braga, também o era em grau de parentesco e não se havia de apoquentar com sentimentos de última hora. E as amizades, feitas em todos estes anos na capital, há muito que não aguentaram o peso da idade e já tinham partido.

Apenas após 375 dias decorridos sobre a sua morte, o corpo da D.ª Donzília foi retirado de sua casa. O senhorio, alarmado por um ano de rendas em atraso, nem questionou ao primeiro mês a regularidade dos quarenta anos que lhe antecederam. Apenas após 375 dias, a D.ª Donzília lá teve um par de braços para a ajudar a descer do seu 4º andar. Mas desta vez, lamentavelmente, não seria para voltar a ver o rio. 






8.3.12

A vida nuns sapatos




São mais de cem. Até podiam ser mais de quinhentos. Cada par conta uma história. E prefiro ter cem histórias para contar a não ter nada para dizer. Cada um dos meus pares de sapatos existem porque os quis na minha vida. Uns por obrigação, outros por necessidade, outros, até, por capricho. Em comum têm o facto de os ter desejado na minha vida. De os ter desejado e de os ter conseguido ter nela. Provavelmente porque naquele momento assim faziam sentido. Alguns, com o passar do tempo, perderam o seu lugar e hoje já não seriam uma opção. Outros são intemporais e quero tê-los por perto para sempre. Também tenho aqueles que amei profundamente mas de tanto os usar estragaram-se. Tenho os novos-em-folha que, por vaidade, apenas tiveram o direito de me ir passear à rua uma vez. Existem ainda os excepcionais, que não foram estreados por serem um trunfo importante para uma ocasião especial. E há os de combate, que me servem todos os dias e me aturam todos os passos. Esses são aqueles em que mais invisto. Aqueles com quem sei que, se é partilhar uma boa parte da vida, então convém que sejam os melhores. Os outros, que serviram apenas para dar uma voltinha, regeram-se por outros critérios. Resultaram daí escolhas menos inteligentes, é certo, mas mais atraentes visualmente. Também foram alguns desses que me magoaram os pés. Fizeram-me feridas. Mas deixei-os pendurados e não voltei a calçar. 
Tenho na colecção, todas as cores, modelos e materiais. Tive os de sola rasa que me fizeram ter os pés assentes na terra e tenho os de saltos altos que me elevam aos píncaros. Os que me fizeram sentir baixa e os que me fizeram sentir a maior mulher do mundo. Alguns valorizaram-me a figura, outros ofuscaram-me a personalidade... Mas foram riscos que preferi correr. 
Tudo por amor aos sapatos. Verdadeiras obras de arte para pisar. Verdadeiros objectos de culto. 

Há muito tempo que não estou apenas a falar de sapatos, pois não?






7.3.12

Nascer para morrer



Não há maior ironia na vida que a própria morte. Nascemos para morrer. Já algumas pessoas antes o constataram. Outras tantas ainda não perceberam nada do que andam a fazer e nem perceberam esta singularidade de termos de lutar pela vida, ainda antes dela o ser, para termos como destino certo a morte. A única razão para isto acontecer só pode ser porque, de algum modo, oportuna e previamente conseguimos saber, ainda antes da concepção, que quando fazemos a viagem entre o nosso pai e a nossa mãe, é para vir ao mundo gozar de uma experiência única e imperdível. Aquele espectáculo para o qual só havia um bilhete. Quem lutou e ganhou, levou para casa o direito a morrer. Foi isso que todos ganhámos.
Apesar de achar a morte uma coisa tramada - porque nem nos perguntam quando queremos que acabe o jogo e desligam-nos, simplesmente, os cabos - nunca tive pena de um dia ter de morrer. Custou-me aceitar que os outros que morreram deixassem de estar comigo. Mas custou-me porque me faziam falta. Por isso suponho que seja puro egoísmo e não dor, amor, ou sentimento de injustiça "ai, que os bons vão sempre primeiro". Vai quem tem de ir e já não tinha o que fazer por cá, ainda que por vezes pareça que já não andamos por cá a fazer nada.
Às vezes até gostava de já ter morrido. Penso até que já podia ter morrido. Em alguns fases da minha vida podia ter acontecido esse momento, de um modo mais ou menos natural. De uma maneira mais ou menos desinteressante e sem marcas. Poderia já ter partido, sem ninguém se assoberbar. Sem grandes choros ou condolências, porque a vida continua para todos os que cá ficam. Podia ter sido pacífico e o assunto já estava despachado. E hoje era um bom dia para morrer, porque não estou a fazer nada. Nada que seja importante para mim ou para os outros. Não passo de um peão que gira no tabuleiro de xadrez apenas a tentar escapar-se. Mas os peões são sempre aqueles que vão à frente para ser comidos não é? Pois, devia então tentar ser a Rainha, mas a diversão não é a mesma. Mas não podemos ser todos peças-chave a alguns lá têm de ir à frente e findar-se para que outros por cá continuem. Mas certo é que todos temos o dia marcado para morrer.
E hoje até podia ser um bom dia para morrer porque está cinzento. É que quando eu morrer, quero que as pessoas fiquem tristes e isso não se compadeceria com os raios de Sol. Queria morrer hoje porque não daria trabalho a ninguém. Morreria sozinha, em casa, nesta casa que só me tem a mim e ninguém mais para cuidar. Morreria solenemente só. Morreria a dormir. Assim o desejamos todos.
Amanhã dariam comigo sem expressão no rosto, abandonada ao momento de solidão que me viu partir.
Tratariam de mim, pela primeira vez em muitos anos, melhor do que nos trinta anos que vivi.
Voltar-me-iam a dar as atenções de quando nasci e me celebraram a chegada ao mundo. 

Ao ver a luz - num foco que nasce ao fundo de um túnel negro como Ébano - descola-se-me a carne dos ossos e fico com vontade de partir.
Afinal de contas, o único bilhete que tínhamos como certo quando nascemos era o da partida.