20.6.11

A casa que falava



Sentia a casa estranha. Uma espécie de respiração que não se via. Uma atmosfera cheia, no meio de um enorme vazio. Parecia estar lá alguém, sem estar. Por isso deslocava-se lentamente, como se receasse despertar alguém. Como se temesse estar a ser vista, sem saber por quem. Percebia que a casa não tinha olhos, nem alma, nem vontade própria mas, ainda assim, suspeitava não estar só. Sabia, ao mesmo tempo, que acaso lá estivesse alguém, esse alguém, lhe conseguia seguir os passos sem que ela tivesse controlo sobre a situação. Começou a sentir-se cada vez mais perseguida. Vigiada. Talvez vigiada.  Quem estava não impunha a sua presença. Não causava transtornos e não pretendia fazer mal. De quando em vez só queria ser notado. Umas luzes acesas ali, uma portas que batiam acolá... nada de importante. Depois chegaram as materializações, as sombras que passavam pelo canto do olho, o rádio que tocava sem ninguém mandar, os livros meticulosamente seleccionados que caiam da estante, os toques na pele enquanto dormia.
Eram, de facto, pequenas chamadas de atenção para ser notado. E ela notava. Continuava, no entanto, sem saber porquê, mas o passar dos anos havia de lhe explicar.
Enquanto se ia acostumando às portas abertas e aos jogos de luzes, tentava aprender a comunicar-se, mas muitas vezes sem sucesso. Um dia, frustrada por não conseguir ver mais, e de não entender quem está do outro lado, decidiu que não queria mais ninguém em casa. Passou a ignorar os sinais, na esperança de os vencer pelo cansaço. Passaram anos e nunca lutou muito. Percebeu rápido que não tinha interferência na matéria. Era apenas um receptáculo. Deixou de lutar contra e acabou vergando-se. Agora pertencia, irremediavelmente, a outro lugar. Agora pertencia a dois lugares. Estava entre lá e cá, a entender os que estão e os que foram. A decifrar as mensagens que ficaram por enviar para entregá-las a quem as aceitar. Acabara de conhecer o seu propósito nesta vida: fazer a ponte com outras vidas.

Nunca teve medo. Esse, fica com aqueles que têm as portas fechadas. 
E ela, que nunca convidou ninguém para entrar, é agora a maior das anfitriãs.





15.6.11

Encómio à ingratidão



Queria ser comedida mas ao mesmo tempo apetece-me explodir. Queria dizer qualquer coisa imperceptivelmente inteligente mas na verdade um "vai à merda" basta. Queria sacar umas frases feitas de uns livros de filosofia mas a urgência de te mandar bugiar é maior que a correria dos olhos pelas letras das páginas.  Queria gritar-te ao ouvido que andas enganado comigo, mas na verdade prefiro humilhar-te publicamente. Humilhar-te publicamente. Soam-me melodiosas estas palavras que na tua vaidade cairão como farpas. Porque, no fundo, para ti o mais importante é a validação que as pessoas fazem dos teus actos. Acima de tudo estará sempre, não o que os outros pensam, mas o medo que tens do que eles possam pensar. Medo da humilhação. A vergonha de te verem como ser humano comum, que és, tira-te o sono de vedeta que pensas ser. Acima de todas as almas estará sempre a manutenção das aparências. O viver num cenário que só existe na tua cabeça. Protagonizar momentos como se tivesses sobre ti focos de um palco onde não pudesses falhar as deixas.
Deixa-te de merdas. Vive. Larga essa presunção de achares que és tão especial ao ponto de pensares que não é esperado menos de ti que a perfeição. Liberta essa máscara. Deixa cair todas as outras.
A pressão a que te impões, de seres perfeito, bloqueia-te todos os outros caminhos para a felicidade que tanto apregoas querer, mas que tudo fazes para afastar.
Os padrões altos que estabeleceste não se compadecem com a tua pessoa. Tu não te localizas nessa gama.
És apenas mais um miserável ser humano. Lamento dizer-to. Não vales mais que eu. Não vales mais que ninguém com quem te cruzaste até hoje. 
A beleza das coisas que crês atribuírem estatuto às pessoas, ou revesti-las de personalidade e princípios, são aquelas pelas quais agora te sentes esmagado. Acreditares e dares credibilidade a quem segue os teus padrões é o mesmo que te condenares a viver para sempre, apenas e só, com seres iguais a ti. E quão horrendo isso poderá ser? Quão intolerante serias a toda essa imaculada perfeição que acreditas ter?
Esse mundo de espelhos acabará contigo. 
Não lamento que padeças em frente a um, mas enfurece-me ter-te estendido a mão e que tenhas cuspido nela. Porque, o que tu não sabes, é que essa mão eras das poucas, que não sabendo o que ocorre por detrás do espelho, estaria disposta a quebrá-lo.

Pediste-me que um dia escrevesse para ti. Pois aqui tens. Um encómio à ingratidão.





6.6.11

A Gruta



Desistira de saber quantos dias haviam passado, por nem saber quantas noites se tinham posto. Vagueava de pedra em pedra, com gestos amedrontados e pernas trémulas, procurando um caminho que nem sabia qual era. Talvez caminhasse em círculos há muitos anos. Ou talvez tivesse percorrido uma longa recta quando a saída estava em cada esquina que não via. Nunca saberá o quão perto esteve de alcançar a claridade do dia.
De quando em vez, tombava-se. Caia em charcos. Resvalava pelas rochas. Sentia o visco de coisas desconhecidas. Mas continuava a andar. Depois sentia-se humilhado e chorava. Chorava de impotência, de dor e de medo. Questionava-se horas a fio se alguém teria vindo em seu auxílio. Se alguém teria dado pela sua falta, ou se, por outro lado, desistiram dele e se entregaram ao pensamento óbvio da perda eterna. Nessas alturas, também ele pensava desistir mas não sabia como. Percebeu cedo que nem podia terminar com a sua vida por nada ver e por nada ter. Queria morrer de fome e de sede mas talvez ainda não tivessem passado dias suficientes para sucumbir à sua ausência. Não tinha armas. Não existiam animais ferozes. Queria morrer e não sabia como. E também por isso chorava.
De uma das vezes que chorou parecia-lhe ter ouvido o seu eco. E havia de o ouvir mais vezes. De quando em vez, lá ia, compassadamente, ouvindo o seu choro copiado. No início chegara a sentir-se acompanhado mas mais tarde apercebera-se que estava, simplesmente, louco. 
Agora já nem sabia se aquela gruta existia apenas na sua cabeça ou se realmente o seu corpo estava perdido nela. Não se lembrava de como ali chegou e por isso não sabia dar resposta à sua dúvida. Estava perdido. Sabia que de nada valia esgotar-se em gritos. Não estaria lá ninguém para o ouvir.
Quando, finalmente, o corpo começara a ceder e a acompanhar os pensamentos derrotistas da mente, lembrou-se da sua vida lá fora. Lembrou-se que lá fora também vivia no escuro apesar de haver tanta luz. Lembrou-se que lá fora a gruta onde vivia tinha outros perigos. Teve a certeza, por momentos, que pelo menos sempre era melhor viver neste escuro e não saber o que nele se passa. Aceitou. Resignou-se.

Fechou os olhos e sucumbiu. Ou talvez tenha sucumbido, firmemente, sem os olhos fechar. 
Mas isso, nunca ninguém saberá e a sua vida será recordada como a de um cobarde.




1.6.11

Os cegos. Os que sofrem de cegueira.



Caso I
Mulher. 30 anos. Pedinte no metro de Lisboa. Algures entre a Baixa e Sete Rios.
Os seus olhos existem por detrás de uma película expeça. Os seus globos assinalam, com movimentos inquietos, o quão desesperados estão por conhecer o mundo, apesar de saberem há muito que essa benção não lhes será concedida. Por isso lutam, atrás da pele contínua, sem rasgões, para se acomodarem a um lugar ermo, escuro e sem concretizações ou perspectivas. O seu horizonte acaba ali mesmo. Nas sua cavidades oculares. Esta mulher, que não trás a felicidade no rosto, apenas espelha um mundo de misérias com a indolência nas mãos. Aquelas que carregam o dinheiro do seu pão, contado a tostões. Recolhido a custo das suas pernas e da sua dignidade, lamenta que a sua única esperança esteja entregue aos outros. Àqueles que vêem. Àqueles ingratos que, por verem tanto por fora, são cegos no seu interior. Àqueles que, de tão absolutos e soberbos, usam todas as suas forças para serem vistos em vez de fazerem por ver. Por isso hoje, não lhe cairá um única chapa na caixa. Porque para os outros ela nem existe. Nem caixas de esmola como a dela. 
Mas esta mulher, de perfil fraco e cabisbaixo, segue o seu caminho a tacto... de gritos sufocados... apenas de mão estendida. Em silêncio. Sem lutar. Sem pregões ou frases de coitadinha. Resigna-se à sua condição. Em silêncio. Contenta-se por apenas ser cega da vista quando os outros o são no coração. Orgulhar-se-á mais tarde por não ter culpa de ser assim, enquanto os outros lutam tanto para deixar de ver. Ainda assim é cega. E chora por isso todos os dias.


Caso II
Homem. 30 anos. Pedinte no metro de Lisboa. Estação de Sete Rios.
Há qualquer coisa de miserável na sua figura. O cabelo sujo, as roupas baças, o andar ondulante, a figura esguia. Torna-se mais perturbante à medida que se aproxima. Os seus olhos atormentam o seu rosto e desfazem-lhe as feições. Mas ele não sabe disso e por isso lá vai... passeando a obscuridade da sua imagem. Deslizando no corredor da carruagem do metro, ao ritmo da bengala e das músicas que vai inventando. Os seus olhos, vidrados como gelo, e envoltos numa película branca, já nem se movem por inutilidade. Seguem firmes como as suas mãos percussionistas e as suas palavras revoltadas. Por vezes imperceptíveis e indecifráveis, o tom ácido deixa transparecer que a cegueira dos outros à sua passagem o incomoda. Cospe na cara das dezenas de pessoas (que se encolhem nas cadeiras para não serem "sentidas") que sabe que elas estão lá, de respiração suspensa para não lhes detectar a falta de humanidade. Este homem não deseja ver para não conhecer as caras daqueles que o ignoram, apesar da orquestra que arrasta consigo todos os dias ter proporções grandiosas e impossíveis de ignorar.
A revolta espelhada nos seus olhos brancos não se compadece com melodias enternecedoras. Por isso, apenas tem para oferecer um grito de alerta em forma de batida metalizada, que se agudiza a cada dia a que assiste ao nascimento de mais cegos naquela carruagem. Na sua vida. Neste mundo.
Naquela carruagem o único que vê, é o cego.


Caso III
Mulher. 40 anos.  Passageira da Carris. Entre o Cais do Sodré e a Estação de Santa Apolónia.
Entrou no autocarro de cabeça erguida. Linda de espantar. Cabelos ruivos bem tratados, caindo lisos sobre os ombros. Umas chamas incandescentes sobre a sua cabeça altiva, endeusando-lhe a pose. Os seus olhos, de um azul cristalino, invulgarmente profundo, invadiram as dúvidas de todos. Aquela mulher perfeita, de tez irrepreensível, não deveria envergar uma bengala. Não aquela mulher. Os medos assolaram os corpos de todos os que se rendiam à sua passagem. Como pôde tal infortúnio abater-se sobre uma mulher de aparência igual à nossa? Um cego deveria ter olhos de cego. Um cego deveria pedir comida a cada carruagem de metro, a cada escadaria, a cada esquina da cidade. A beleza daquela mulher deixa todos no chão. Afinal a cegueira não é resultado da doença "pobreza". Afinal a cegueira assalta todos, assim Deus ou o Diabo o designe. 
O sorriso nos lábios, desenhados a esquadro, enfatizam o cenário desconcertante. Que razões teria aquela mulher para sorrir quando a cegueira é a mais miserável insuficiência de sentidos? Talvez se ri-se de nós. 
E não tardariam dez minutos até que tivesse todas as razões para isso. Na chegada ao seu destino, após escassos minutos de viagem, quando necessitou de auxilio, não encontrou nenhum par de olhos válido que a ajudasse. Que a conduzissem. Apesar da destreza dos sentidos, e do apurado sentido de orientação que adquiriu, ela não contou deparar-se com a ignobilidade dos seres que veêm. Esses seres que apenas conhecem o mundo pelos olhos esqueceram-se de quem o conhece o mundo com todos os outros sentidos, à excepção da visão. Uns dias antes alteraram-lhe o caminho que tão bem conhecia. Aquele percurso que metodicamente percorria à saída do autocarro sofreu uma revolução silenciosa. Sem avisos. Naquele dia saiu segura e desorientou-se logo depois, por ninguém se ter lembrado que aquele espaço também era seu. Desamparada, e de sorriso perdido, não conseguia dar ordens à bengala para sair dali. No meio dos seus passos intermitentes alguém (que vê além dos olhos) lá lhe segurou no braço e lhe dirigiu palavras de pacificação. O seu sorriso voltou nervoso. Recebeu novas instruções do recente percurso que ali se havia instalado. Percebeu o quão perigoso agora estava. No meio das palavras de circunstância, trocadas com o seu guia ocasional, lá chegou ao seu destino, pelas mãos desse desconhecido com o qual não se voltaria a cruzar.
Naquele dia, para ela, ficou clara a razão pela qual se pode rir dos outros. Ao contrários "deles"o facto de ser cega nunca será um obstáculo à sua felicidade. E também ao contrário "deles", o único mal de que padece é a cegueira... ao passo que os outros, sem saberem, também sofrem de uma certa forma de autismo.

Nesse dia percebeu que a cega não era ela.