1.6.11

Os cegos. Os que sofrem de cegueira.



Caso I
Mulher. 30 anos. Pedinte no metro de Lisboa. Algures entre a Baixa e Sete Rios.
Os seus olhos existem por detrás de uma película expeça. Os seus globos assinalam, com movimentos inquietos, o quão desesperados estão por conhecer o mundo, apesar de saberem há muito que essa benção não lhes será concedida. Por isso lutam, atrás da pele contínua, sem rasgões, para se acomodarem a um lugar ermo, escuro e sem concretizações ou perspectivas. O seu horizonte acaba ali mesmo. Nas sua cavidades oculares. Esta mulher, que não trás a felicidade no rosto, apenas espelha um mundo de misérias com a indolência nas mãos. Aquelas que carregam o dinheiro do seu pão, contado a tostões. Recolhido a custo das suas pernas e da sua dignidade, lamenta que a sua única esperança esteja entregue aos outros. Àqueles que vêem. Àqueles ingratos que, por verem tanto por fora, são cegos no seu interior. Àqueles que, de tão absolutos e soberbos, usam todas as suas forças para serem vistos em vez de fazerem por ver. Por isso hoje, não lhe cairá um única chapa na caixa. Porque para os outros ela nem existe. Nem caixas de esmola como a dela. 
Mas esta mulher, de perfil fraco e cabisbaixo, segue o seu caminho a tacto... de gritos sufocados... apenas de mão estendida. Em silêncio. Sem lutar. Sem pregões ou frases de coitadinha. Resigna-se à sua condição. Em silêncio. Contenta-se por apenas ser cega da vista quando os outros o são no coração. Orgulhar-se-á mais tarde por não ter culpa de ser assim, enquanto os outros lutam tanto para deixar de ver. Ainda assim é cega. E chora por isso todos os dias.


Caso II
Homem. 30 anos. Pedinte no metro de Lisboa. Estação de Sete Rios.
Há qualquer coisa de miserável na sua figura. O cabelo sujo, as roupas baças, o andar ondulante, a figura esguia. Torna-se mais perturbante à medida que se aproxima. Os seus olhos atormentam o seu rosto e desfazem-lhe as feições. Mas ele não sabe disso e por isso lá vai... passeando a obscuridade da sua imagem. Deslizando no corredor da carruagem do metro, ao ritmo da bengala e das músicas que vai inventando. Os seus olhos, vidrados como gelo, e envoltos numa película branca, já nem se movem por inutilidade. Seguem firmes como as suas mãos percussionistas e as suas palavras revoltadas. Por vezes imperceptíveis e indecifráveis, o tom ácido deixa transparecer que a cegueira dos outros à sua passagem o incomoda. Cospe na cara das dezenas de pessoas (que se encolhem nas cadeiras para não serem "sentidas") que sabe que elas estão lá, de respiração suspensa para não lhes detectar a falta de humanidade. Este homem não deseja ver para não conhecer as caras daqueles que o ignoram, apesar da orquestra que arrasta consigo todos os dias ter proporções grandiosas e impossíveis de ignorar.
A revolta espelhada nos seus olhos brancos não se compadece com melodias enternecedoras. Por isso, apenas tem para oferecer um grito de alerta em forma de batida metalizada, que se agudiza a cada dia a que assiste ao nascimento de mais cegos naquela carruagem. Na sua vida. Neste mundo.
Naquela carruagem o único que vê, é o cego.


Caso III
Mulher. 40 anos.  Passageira da Carris. Entre o Cais do Sodré e a Estação de Santa Apolónia.
Entrou no autocarro de cabeça erguida. Linda de espantar. Cabelos ruivos bem tratados, caindo lisos sobre os ombros. Umas chamas incandescentes sobre a sua cabeça altiva, endeusando-lhe a pose. Os seus olhos, de um azul cristalino, invulgarmente profundo, invadiram as dúvidas de todos. Aquela mulher perfeita, de tez irrepreensível, não deveria envergar uma bengala. Não aquela mulher. Os medos assolaram os corpos de todos os que se rendiam à sua passagem. Como pôde tal infortúnio abater-se sobre uma mulher de aparência igual à nossa? Um cego deveria ter olhos de cego. Um cego deveria pedir comida a cada carruagem de metro, a cada escadaria, a cada esquina da cidade. A beleza daquela mulher deixa todos no chão. Afinal a cegueira não é resultado da doença "pobreza". Afinal a cegueira assalta todos, assim Deus ou o Diabo o designe. 
O sorriso nos lábios, desenhados a esquadro, enfatizam o cenário desconcertante. Que razões teria aquela mulher para sorrir quando a cegueira é a mais miserável insuficiência de sentidos? Talvez se ri-se de nós. 
E não tardariam dez minutos até que tivesse todas as razões para isso. Na chegada ao seu destino, após escassos minutos de viagem, quando necessitou de auxilio, não encontrou nenhum par de olhos válido que a ajudasse. Que a conduzissem. Apesar da destreza dos sentidos, e do apurado sentido de orientação que adquiriu, ela não contou deparar-se com a ignobilidade dos seres que veêm. Esses seres que apenas conhecem o mundo pelos olhos esqueceram-se de quem o conhece o mundo com todos os outros sentidos, à excepção da visão. Uns dias antes alteraram-lhe o caminho que tão bem conhecia. Aquele percurso que metodicamente percorria à saída do autocarro sofreu uma revolução silenciosa. Sem avisos. Naquele dia saiu segura e desorientou-se logo depois, por ninguém se ter lembrado que aquele espaço também era seu. Desamparada, e de sorriso perdido, não conseguia dar ordens à bengala para sair dali. No meio dos seus passos intermitentes alguém (que vê além dos olhos) lá lhe segurou no braço e lhe dirigiu palavras de pacificação. O seu sorriso voltou nervoso. Recebeu novas instruções do recente percurso que ali se havia instalado. Percebeu o quão perigoso agora estava. No meio das palavras de circunstância, trocadas com o seu guia ocasional, lá chegou ao seu destino, pelas mãos desse desconhecido com o qual não se voltaria a cruzar.
Naquele dia, para ela, ficou clara a razão pela qual se pode rir dos outros. Ao contrários "deles"o facto de ser cega nunca será um obstáculo à sua felicidade. E também ao contrário "deles", o único mal de que padece é a cegueira... ao passo que os outros, sem saberem, também sofrem de uma certa forma de autismo.

Nesse dia percebeu que a cega não era ela.





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