21.6.14

Qu4tro Segundos







Uma vez, um homem, disse-me que eu devia ter vergonha do meu corpo. Mas não assim, desta maneira contida. Disse-o com outras palavras que nunca mais consegui repetir mas que não paro de ouvir na minha cabeça.

Nunca consegui ultrapassar aquela frase. De apenas quatro segundos.

Nem aquele momento, aquele dia. Nunca consegui ultrapassar a repulsa que passei a sentir pelo meu corpo. E é isso que não lhe perdoo. Ter-me roubado de mim mesma.
Não o amava e por isso não fiquei ferida por o perder. O que ficou ferido foi o amor próprio. Passei a viver num enorme embaraço dentro da minha própria cabeça. Na vergonha, como ele mesmo disse. Na humilhação das palavras.
E, desde então, não me sinto tão mulher.
E como é que se pode aceitar que alguém nos faça isto?
Que nos humilhe ao ponto de não querermos mais existir no nosso próprio corpo?

Um par de anos depois, rodeada de amor, de sentimentos genuínos, de pessoas boas, não consegui apagar aqueles quatro segundos. Não houve, depois disso, um momento que revertesse aqueles quatro segundos.
E não sei porque consigo falar disto hoje, mais de dois anos volvidos, mas talvez precise de o fazer como parte desse processo de reversão. De cura. Porque eu preciso curar-me daquele momento. Preciso voltar a mim, fazer as pazes com o meu corpo, e deixar que o meu corpo se deixe amar por quem me ama. Independentemente da forma que ele tiver. Porque naqueles quatro segundos foi-me tirada a alegria a mim e a quem agora me tem. E que por isso me tem partida em cacos.

Ainda acredito que um dia me voltarei a cruzar com o homem que me disse que devia ter vergonha do meu corpo. Mas não assim, desta maneira contida. E nesse dia acho que não lhe vou dizer nada. Porque ainda hei-de sentir vergonha de mim e ele há-de continuar a sentir-se bem consigo. Vergonha e medo. Porque, apesar desse homem nunca me ter tocado, senti-me, profundamente, violada. Senti-me ainda pior por nunca o ter conseguido contar a ninguém.

E hoje, na minha cabeça, não importa se o abuso durou apenas quatro segundos ou uma vida. Porque soube-o, nesse dia, que quatro segundos é todo o tempo que precisamos para morrer.



6 comentários:

  1. Tenho para mim que ninguém se livra das coisas fechando-as em si. Temos de as libertar, para podermos ser livres. Tens de gritar essa frase, soltá-la de dentro, expulsá-la de ti. Berrá-la, sozinha, para fora de ti, até se esgotar dentro de ti e já não te dizer nada. Se calhar devias tê-la escrito, seria a purga definitiva, escrever preto no branco para mostrares que já não tens medo dela, confessá-la, para que não te possa violar mais. Assumir, meter as mãos nos medos, como fizeste aqui, asfixia-os e depois respiramos, finalmente.

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    1. Se me conheço, ainda vou demorar a concluir o processo.
      Isto se o chegar a concluir.

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  2. Já me disseram algo muito semelhante. A minha reacção foi que devia era ter vergonha e real nojo de estar perto daquela p..coisa, de valor nulo. Ultrapassei, superei. Hoje sou superior àquela coisa, que poderia ser uma pessoa, mas tamanha é a podridão que nem pessoa é.
    Não valorizes o que não tem valor.
    Hoje estás aqui e com certeza podes fechar esses quatros segundos entre parênteses e rasurá-los. Essa pessoa não merece nem mais um segundo da tua vida.
    Tudo de bom!

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  3. palavras que nos ferem para o resto da vida, podemos conviver com elas mas sabemos que nos deixaram as marcas. sei bem o que isso é. acho mesmo que o que resta nestes casos é tantarmos conviver com isso.
    :(

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