25.8.14

A Grande Casa





Havia uma grande casa onde morava muita gente. Uns conheciam-se, outros não. Havia casos de pessoas que eram familiares entre si, de amigos que eram bons amigos e de outros amigos que eram apenas conhecidos. Mas também havia os que não simpatizavam com este ou aquele, e havia também aqueles que não gostavam de ninguém. Também habitavam na grande casa os que diziam que gostavam de toda  gente mas o "toda a gente" eram apenas eles próprios. Havia os altruístas e os egoístas mas os egoístas eram mais. Depois havia os porreiros, para quem estava sempre tudo bem, e havia os paranóicos, para quem havia sempre alguma coisa mal. Também habitava na casa uma ou outra pessoa invisível: "Quem?", "Faz o quê?", "Chama-se como?"... "Ah, pois. Não estou a ver quem é". E havia os distraídos.
Na grande casa, uns diziam, com orgulho, que eram todos uma grande família. Outros, mais conscientes, fugiam do convívio e recusavam afinidades. Eram os surdos, os cegos e os mudos. Mas não eram burros. Mas também os havia, os burros. Estavam na parte da alta da casa. Eram arrumados na parte mais alta da casa para não incomodarem os outros, ainda que eles pensassem que estavam na parte alta da casa por serem muito importantes. Mas não eram. Eram burros e ninguém os queria aturar.
Depois, havia aquele punhado de gente que arrumava, limpava, organizava, que mandava na casa, que a punha a funcionar, mas cujo nome ninguém sabia. Só sabiam, e era consensual, que eram necessários à casa. Como formigas obreiras. São precisas mas se alguma morrer depressa se substitui. Afinal, são todas iguais.
Na casa grande onde morava muita gente, podiam não saber os nomes uns dos outros, nem o que faziam, mas os habitantes da grande casa conheciam as muitas regras que ao longo dos anos se instituíram. Mas havia um problema: uns cumpriam-nas e outros não. A primeira regra, por exemplo, sabiam-na na ponta da língua: não era permitido entrar mais ninguém na grande casa. Recebiam-se visitas à porta, aceitavam-se cartas, de quando em vez até se admitia um presente, de uma alma mais misantropa, mas nunca, nunca, as regras admitiram que estranhos se instalassem na grande casa. Mas era sabido que esta regra há muito que demorava a vingar e que nem sempre havia sido cumprida. Pelos mais velhos. Os mais velhos da casa, antes da casa grande ter muita gente lá dentro, gostavam de receber visitas, de lhes aceitar os favores e de retribuir com favores também. Faziam-se festas e arraiais, fizeram-se negócios, compraram-se segredos, e venderam-se almas. Tudo dentro das muitas paredes da grande casa.
Os velhos estavam tão habituados a fazer tudo dentro da casa, que acabaram por se esquecer que as muitas paredes que os escondiam também tinham muitos recantos que os expunham. Muitas esquinas pontiagudas que juntavam sujidade que se acumulou por anos, e anos... Estavam tão confortáveis que nem repararam que os mais novos da casa, avessos a velhos hábitos, começaram aos poucos a limpar o pó. A arrumar os móveis. A sacudir os cortinados. E a encontrar os segredos, debaixo dos tapetes.
Um dia, quando os mais novos já estavam cansados de limpar o que os mais velhos continuavam a sujar, gerou-se um motim. E os mais velhos não compreendiam. Não percebiam o que tinha de mal. Quiseram convencer os novos que as vendas da alma tinham de se perpetuar. Como uma herança. Como um ritual.
Mas os mais novos recusaram vender-se e a sentença ficou lida: "A grande casa ficou pequena para vocês. Não são mais bem-vindos aqui".

Os mais novos não choraram.
Encheram o peito de orgulho e seguiram o seu caminho.
Com a alma, intacta, que não venderam.



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