Ontem fui à missa. Permiti-me ir sondar o meu estado de espírito e talvez esperasse alguma serenidade mas, por alguma razão, senti uma grande inquietação e, não, não é no sentido "do espírito que se inquieta com Deus". Deixemo-nos disso...
A verdade é que, em vez de me sentir envolvida e concentrada no momento, é-me muito difícil abstrair da envolvente e interiorizar o ritual litúrgico, quando dois terços da missa continuam a ser o que já eram desde que me conheço: uma repetição de frases feitas, entoadas como mantras, sempre nos mesmos momentos, com a mesma cerimónia. É caso para dizer que quem viu uma já viu todas. E isto não fideliza clientes. Até percebo, até determinado ponto, que a repetição e a entoação, proporcionem relaxamento mas, tal como no yoga, às tantas tens de mudar de posição ou começas a ficar entorpecido e perdes o interesse em ir à próxima aula. Por exemplo, eu gosto muito de ver o Preço Certo, mas não pode acontecer existirem sempre os mesmos prémios, com os mesmos preços, a Lenka estar sempre de minissaia, o gordo dizer sempre "espetácle", a roda calhar sempre no 100, e a montra final ser sempre 22 mil euros e no final, o mesmo homem com um pullover de malha grossa de mil nove oito nove, ganhar. Em algum momento, a Lenka tem de ir de calças, o prémio maior tem de ser uma caixa de rebuçados em vez de um carro, e o concorrente tem de esbardalhar-se por 5€. Caso contrário, qual é que é o propósito? Se eu já sei que todos os dias passam o mesmo programa, porque é que eu o hei-de voltar a ver todos os dias durante trinta anos?
A missa é isto. Perdoem-me, mas é.
Talvez com excepção para a homilia que, dependendo do talento do orador, pode ser enriquecedora ou parecer uma conferência de imprensa do Manuel Machado. Ontem, ainda que tivesse começado bem com uma leitura do Livro dos Provérbios sobre os dons das mulheres, e um provérbio é sempre fonte de sabedoria e reflexão, depois a homilia pareceu mesmo um misto de Manuel Machado com um piquinho de Manuel Maria Carrilho. Mas podia ser eu a escalpelizar já demasiado.
Assim, não é difícil perceber porque é que os meus pensamentos se dispersam e, quase sempre, tendo em consideração o contexto sagrado, eu diria, acabo a pecar. Ora reparo na pessoa que chega a quinze minutos do fim da missa, ou olho para o padre e não consigo evitar a comparação com o mestre Yoda, ou reparo que há um pozinho que já precisava ser limpo, ou penso nos número de mãos por lavar que já se enfiaram naquela pia de água benta, ou impressiono-me com a falta de mestria do senhor padre ao meter meia hóstia das grandes na boca como se estivesse a comer uma Pringle. A mim ensinaram-me que não se roía a hóstia! Ou engoles inteira ou vais desfazendo no céu da boca com a língua, mas mandar uma trinca é que era um grande sacrilégio no meu tempo!
Na hora da comunhão também não sou branda com os pensamentos críticos: sou a única a ficar sentada no banco. A única! Ora bem, no meu tempo, comungava quem se sentia de bem com Deus, com os Irmãos e com o mundo em geral. Claro que isto pode ser vago porque a consciência de cada um varia muito mas, pergunto-me, será que toda aquela gente se porta bem 24 horas/dia, 7 dias/semana? Toda a gente é bom pai, bom filho, bom amigo, colega, funcionário, cristão? Epá, fiquei mesmo lá na merdinha porque no meu exame de consciência eu chumbei em mais de 50% dos critérios de avaliação e isto não dá direito a hóstia. Depois tentei tranquilizar-me e pensei que, pelo menos, era sinal que ali, naquele local, só estava rodeada de pessoas do bem que já atingiram o nirvana (não, não pensei nada). E nisto, lembrei-me de uma tia minha dizer que tomava sempre a hóstia porque não tinha pecados (ai filha...) e, por pecados, queria dizer que não tinha cometido pecados capitais ou ido contra os dez mandamentos. Pois, eu até espero bem que não. Assim de repente, apraz-me que ela nunca tenha matado ninguém, nem cobiçado a mulher alheia, ou invejado a galinha do vizinho, porque não se espera menos de um bom cristão. No entanto, pergunto-me, se é só desta check list que se faz um ser humano honrado e digno de receber Jesus dentro de si (que é como quem diz: estar em condições de receber a hóstia).
Pois eu não comungo, talvez, há uns dez anos. Acho que a última vez que o fiz foi quando a minha avó morreu, por respeito, e porque nesse momento o meu coração estava em paz. Fora isso, nunca mais me achei em condições de receber Jesus porque nunca mais "limpei a casa", não pratiquei a minha vida cristã e não mantive como hábito o sacramento da confissão que, lá está, no meu tempo era uma espécie de ritual detox pré-comunhão. Era uma espécie de "a menina não paga mas também não anda" da igreja católica. E eu, não sendo de longe a mais fiel das servas, uma coisa na minha vida sei: existem regras, se não estás disposta a segui-las, salta fora. E eu saltei fora.
Uma nota positiva, mais ou menos, nesta cerimónia - e isto depende dos padres e das igrejas - é que já não se dá o beijinho ao vizinho. Digo "mais ou menos" porque a intenção do ritual é boa mas nunca sei se me apetece alinhar. É uma espécie de ritual de abertura do Web Summit: levantem-se e dêem lá uma beijoca e um abraço ao colega do lado e a seguir cantamos o Kumbaya. Mas sem a parte fashion da coisa... e sem o kumbaya.
Eu sou das que sente o constrangimento de cumprimentar quem não conheço mas é igualmente constrangedor veres os meninos todos a darem beijinhos entre si e tu ficares de fora. É como se não gostassem de ti mas tu precisares da aprovação de todos. Há qualquer coisa de friozinho bom na barriga. Por isso, lá te arrastas um banco meio para o dar o beijinho à senhora que nem sabe rezar o Pai Nosso e apertar a mão ao cavalheiro que rezou a missa toda de cabeça baixa, sabe Deus porquê.
Apesar de tudo, e dos momentos de incompreensão do que se passa na maior parte da liturgia, ainda assim, algo dentro de mim me diz, que a melhor parte deste Preço Certo, é mesmo aquela em que, genuinamente, as pessoas dão beijos ao gordo e agradecem ao senhor presidente da junta ter emprestado o autocarro. E é isso que é uma pena estar a perder-se.