31.8.16

Um sonho dentro de um sonho




Tome este beijo sobre tua fronte!
E, desenvencilhando-me de ti agora,
Permita-me confessar -
Não erras, ao supor
Que meus dias têm sido um sonho;
Ainda que a esperança se esvaia
Numa noite, ou num dia,
Numa visão, ou em nenhuma,
Tudo aquilo que vemos ou nos parece
Nada mais é do que um sonho dentro de um sonho.

Permaneço em meio ao bramido
Da costa atormentada pelas ondas,
E seguro em minha mão
Grãos dourados de areia-
Quão poucos! e contudo como arrepiam
Por entre meus dedos às profundezas,
Enquanto choro - enquanto choro!
Oh Deus! não posso eu segurá-los
De punho mais firme?
Oh Deus! não posso salvar
Um único da onda impiedosa?
Tudo aquilo que vemos ou nos parece
Nada mais é do que um sonho dentro de um sonho.

"Um sonho dentro de um sonho" - Edgar Allan Poe



17.8.16

Renascer



Renasceste hoje.
Era madrugada.
Acordei, ao lado do teu pai, e senti-te.
À mesma hora.
Todos os dias de madrugada, à mesma hora...
Renasces.

Os olhos abrem-se ao acelerar do coração.
Acordo em sobressalto.
O pulso diz-me que estás a renascer.
Sinto-te a sair de mim.
Sinto-te nos meus braços.
Dou-te o calor do meu peito.
É o único momento em que te posso ter.
Naqueles segundos entre o sonho e a realidade.
Nesses segundos que Deus me concede todos os dias.
Como uma recompensa.

Mas o tempo é-nos cruel.
Finda-se.
A realidade atinge-me e tu desapareces.
O calor dá lugar a coisa nenhuma.
A esse espaço a que chamam vazio.
Encalhada no silêncio, 
Entre o desnorteio e a dor.
Cerro os olhos.
Com força.
Em vão...
Sei que só voltarás a renascer amanhã, à mesma hora.
De madrugada.
Esperarei por ti.
Em mais um dia que se perpetua.

Com as lágrimas retidas num tempo perdido,
Volto à cama.
Ao calor dos braços do teu pai.
De olhos no tecto.
De mãos fechadas num punho de dor.
Com lábios duros, que hesitam entre fechar-se para sempre,
Ou nunca mais silenciar o choro.
Observo o teu pai.
Observo mais uma vez.
E os olhos amolecem em paz.
Sei que amanhã voltarás a renascer.

À mesma hora.
Todos os dias de madrugada, à mesma hora...
Renasces.


8.8.16

Palpitações

Irving Penn



Aquele ácido que te corre pelas veias,
Não é ácido,
É o sangue a pulsar.
A dizer-te que estás vivo,
Com as artérias a rebentar.
As palpitações,
As palpitações...
As palpitações são ardores de peito,
São amores,
São o que sentes,
Mas escondes por medo.
Aquilo que vibra nesse corpo,
Não é proibido,
É a ambição.
De algo que julgavas perdido,
De um arrebate,
De coração.
E o fogo,
Que não inibes nem retrais,
É a paixão.
A dizer-te que o que queres,
Mesmo que o negues,
Um dia...
O terás.



(02.03.2016)

3.8.16

No dia em que perdemos tudo

Joe Webb


Por vezes a dor é tudo o que se tem.
Tudo o que nos resta.
Perde-se a alegria.
A vontade.
Qualquer vontade.
Perde-se a visão do mundo.
E com ela a esperança.
Sim, tantas vezes se perde a esperança.
Tantas vezes, que nos perguntamos se alguma vez a chegámos a recuperar.
Perdemos o olhar sobre nós mesmos.
E ganhamos as atenções indesejadas de outros.
Perdemos a compreensão de todos.
Porque as dores e as curas se fazem a velocidades diferentes.
Porque a distância com que se olha para o poço ou nos amortece a queda, ou a endurece.
Quem olha de longe o poço não lhe conhece o fundo.
Quem está lá dentro não lhe encontra a saída.
Perdemos o distanciamento.
Perdemos a dignidade.
E a clareza dos pensamentos.
Perdemos o bom, o nosso melhor, e, outras vezes, todas as outras vezes, ficamos com o mau.
Dias há que nem a própria alma temos.
Foi-se.
Num dia, de repente.
Ou em todos os anos que se viveu, paulatinamente.
Como se fossemos consumidos.
Sem se dar por ela.
Ou porque ignoramos que esteja a acontecer.
Perdemos os momentos.
Os nossos, os dos outros, os do mundo.
Não vivemos o que tínhamos para viver.
Cristalizamo-nos no tempo.
Num único momento.
E desperdiçamos todo o resto.
Por que queremos.
Porque assim nos fazemos sofrer mais.
E nos tempos em que se perde tudo, o sofrimento consola-nos.
Faz-nos companhia.
A única que toleramos.

Há momentos na vida em que quase perdemos tudo.
Quase perdemos tudo.
Só não perdemos a dor.



2.8.16

45 dias




Esta casa já não é minha.
Deixou-me no dia em que partiste.
Há mais de quarenta e cinco dias. 
Choro a tua ida, todos os dias, e conto esses mais de quarenta e cinco dias a dedo, entre a esperança de ver os dedos terminarem e a vontade de perpetuar este sofrimento.
De prolongar a lembrança do dia em que saíste de mim para ires morar num sítio que não conheço.
E aflijo-me, numa respiração profunda, com esse sítio para onde foste.
Sozinho.
Como te pude deixar ir sozinho? Para um lugar que não conheces... Durante a noite. Numa tranquila noite. Mas tão escura. Tão fria.
Que mãe me tornei eu para te deixar partir, ainda sem saberes andar, sem conheceres as provações deste mundo e do outro, sozinho?
Ou serás tu, meu amor, tão forte, tão mais forte que eu e que aqueles que te ficaram a chorar a partida, que tiveste forças para ir sozinho e esperar lá por nós?
Talvez o sejas.
És com certeza. A tua vinda tortuosa e breve neste mundo talharam-te o pulso. És o melhor de nós. És melhor que nós.
E serás, eternamente, um retrato de nós.
Guarda-o contigo porque, o que fomos em ti, já não voltaremos a ser.

[A mulher que eu era exilou-se dentro de outra que eu não conhecia.
E elas têm-se amigado, num apego que temo ser irreversível.
Tão irreversível que, se eu já não sou eu, como poderei voltar a ser uma coisa que já não sou?
A mulher que eu era exilou-se. E já não quer sair.]