Quando leres esta carta ela terá mais de quarenta anos. Talvez mais de cinquenta. Eu já terei partido.
A mãe escreve-te esta carta à distância do tempo em que soube que não te iria ter. À distância das dores dos dias em que soube que não te poderia ter.
Mas a mãe, bem sabes, porque te hão-de ter contado todas as minhas epopeias e as minhas tempestades de espírito, teve uma daquelas personalidades difíceis de abalar. E perante um desejo tão profundo, teve dificuldade em deixá-lo para trás e por isso lutou com todo o tempo e forças que lhe restaram na vida para o concretizar: ter-te.
Quando leres esta carta, sei, porque sei, e os que cá ficaram ter-te-ão contado porque é que sei, que já cá não estou. E, por essa razão, estás a ler esta carta sozinho. Mesmo sem saberes bem porque é que esta pessoa que não conheceste te deixa estas palavras. Sem saberes bem porque é que este amor me moveu a lutar por ti. Sem compreenderes como e porquê se luta por uma coisa que não existe. E é por isso que te escrevo esta carta. Para te explicar porque razão te quis tanto depois de saber que não te podia ter. Porque razão se passa uma vida a não querer algo e depois, perante a confirmação de que efectivamente não a teremos, afinal, já a queremos tanto. Não será uma lição de vida meu filho. Essas aprendem-se vivendo. É apenas a história do dia em que soube que perante a possibilidade de não te vir a ter te passei a amar e a querer ainda mais. Como uma menina mimada. É a história desta mulher mais nova que tu, em relação à idade que terás neste momento em que lês a carta, e que, no entanto, já é tua mãe mesmo sem o ser. Tens, neste exacto momento, o amor mais honesto, desapegado e sincero, que uma mulher alguma vez te poderá dar. Tenho agora trinta e quatro anos e amo-te a ti e ao teu pai e a história desta carta resume-se a isso.
Amo o teu pai karmicamente, para além do humanamente compreensível, e quis perpetuar esse amor numa comunhão genética que, apesar de se mostrar difícil, na minha cabeça, sairia perfeita. Não sei se és perfeito, mas na minha cabeça sempre imaginei que sim. Feio como o teu pai, inteligente como eu. Era assim que o desejávamos.
Vou ter-te, se não me falham os astros, para lá dos meus quarenta anos, e o meu corpo, já saberás a história, não aguentará. Vou deixar-vos, amores da minha vida, entregues um ao outro. A ti e ao teu pai, num choro despregado, por razões dolorosamente diferentes.
Não sei se compreendeste tudo o que te disse. Não sei se compreendeste o propósito destes palavras e de tantas voltas. Não sei se justificas uma vida com outra. Mas no fim, contas feitas, a única coisa que quero que compreendas passados tantos anos, é que tudo, tudo, todas as lutas, todas as perdas, todos os choros, resumiram-se a uma só coisa que podia ter poupado todas estas palavras: o amor.
No dia em que soube que podia não te ter, senti mais amor por ti, e senti que podia não estar a dar todo o amor que devia ao teu pai e isso assustou-me: poder viver sem mais amor. Já imaginaste o que é passar uma imensidão de vida sem qualquer espécie de amor?
Apesar do corpo, o meu, apesar de Deus, o nosso, não nos ter traçado a tua existência eu quis mais. E consegui mais. Eu ousei arriscar ter todo o amor possível na nossa vida. E tive.
Nesse dia dei-te o meu lugar.
Não podíamos ficar os dois.
Perdoa-me, se ainda não o tiveres feito.
Acredita na eternidade porque é lá que nos encontraremos e te poderei dar um primeiro abraço.
Eu jovem. Tu velho. O teu pai... sem idade, como sempre o vi.