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Uma
vez na praia ouvi uma mãe, desesperada por adormecer o seu pequeno filho,
dizer-lhe: "Oh filho, mas porque é que não dormes? Para dormir basta
fechar os olhos".
E
aquilo foi um momento revelador. Estranhamente revelador e lúcido.
Naquele
instante, aquela lógica, pareceu-me ter encaixe em muitas outras coisas. Era
tão simples aquela ideia, mas tão simples, que me questionei porque não
funciona assim em tudo na vida?
Tens
fome? Então porque não comes?
Tens
frio? Porque não te vestes?
Tens
medo? Então porque não enfrentas?
Estás
cansado? Porque não te sentas?
Nisto,
enquanto tentava perceber porque é que aquela criancinha não conseguir dormir
apesar do bom conselho da mãe, procurava na minha cabeça respostas também para
outras coisas tão importantes da vida, mas que não conseguimos resolver por
vias tão pragmáticas. E cheguei a uma conclusão. A criança não precisava apenas
de fechar os olhos para dormir: ela tinha de querer dormir. Ela tinha de
permitir-se fechar os olhos. Tinhas de ter essa vontade. Dependia apenas do
“seu querer”. Naquele momento as felicidades, da mãe e do filho, dependiam
apenas de “um querer”, e quem devia ter esse querer, naquele momento, não quis.
E, assim, a outra felicidade ficou comprometida por isso.
Conheço muita gente que lamenta não ser
feliz, mas na verdade nunca o quis ser. Nunca se permitiu ser. São pessoas que
deixaram os factores externos terem mais poder de intervenção, que a sua
própria vontade. São pessoas que fecham os olhos mas nunca se deixam dormir.
São pessoas que não querem dormir com medo que os outros as acordem. Têm medo
de ser acordados e gostar. Parece que têm medo de ser felizes.
Também há os que não são felizes porque
penduram essa felicidade numa decisão dos outros. Porque não sabem caminhar sozinhos
e dependem do bocadinho de felicidade que os outros lhes queiram proporcionar.
*
Há
muitos anos, discutia com um namorado um assunto tão importante para ele, que
eu já nem me lembro qual era. Mas era muito importante, com certeza, porque
para mim só vale a pena discutir (brigando) quando o assunto é sério. Mas,
honestamente, acho que apenas estávamos a divergir porque a comunicação estava
a acontecer em frequências diferentes e, já se sabe, grande parte dos problemas
entre as pessoas têm origem nas falhas de comunicação. Ainda assim eu quis dar
uma oportunidade àquela conversa, mas eliminado a discussão, e por isso tentava
explicar-lhe a sua inutilidade. Expliquei que devíamos optar por simplificar os
raciocínios mas investir esforços em verbalizá-los na perfeição e que, quanto
mais simples fosse a sua entrega à comunicação, menos desentendimentos
existiriam, porque a probabilidade de o receptor perceber mal a mensagem, seria
muito menor.
Ficou
irado. Queria discutir e eu não estava a alinhar.
É
que para mim, dentro do bolo da felicidade, as discussões inglórias não têm
lugar. São uma espécie de tripas de peixe em cima de uma tarte de amêndoas:
simplesmente, não bate certo. Ser feliz num território de conflito é, para mim,
entrar em zona non aedificandi. Por
isso procuro primeiro o caminho simples para as coisas: conversar. Conversar
apenas. Ser simples. Comunicar de modo simples. Mas comunicar muito.
Lá
continuei a minha senda de apaziguamento e tentei explicar-lhe que não pensávamos
da mesma maneira porque ele tinha um raciocínio complexo, enquanto o meu era
linear e que as atitudes pragmáticas são quase sempre as melhores. Mas não
estava a ter sucesso.
E
eis que se deu um episódio que viria a ficar para as histórias das nossas vidas
(que, entretanto, cada um seguiu com a sua).
Com
as palavras já esgotadas e a perderem o sentido, transmiti-lhe num gesto
o que estava a pensar daquilo tudo, dizendo-lhe com as mãos: "É que
tu pensas “assim”, enquanto eu penso “assim”".
Enquanto
no primeiro "assim" simulava o gesto de enrolar um novelo de lã
emaranhado e, no segundo "assim", parecia desenrolar desse novelo um
fio simples e direito.
Ele
quedou-se. Percebeu que dentro dele o novelo tinha a mesma extensão de fios que
eu tinha dentro de mim, mas os fios deles estavam todos enrolados, e os meus não.
Nos momentos em que a felicidade não nos
atinge porque temos problemas em comunicar, devíamos lembrar-nos deste novelo. Pensarmos
que está nas nossas cabeças viver apenas com um fio de lã em vez passarmos a
vida a embrulhar um novelo. Porque é fácil emaranhar um fio até dele fazer um
novelo, mas é muito mais difícil desembaraçar um novelo até obtermos apenas um
fio.