A disciplina pautava todas as horas do seu dia, todos os dias, há mais de 20 anos. As regras a que se impunha estavam apenas na sua cabeça e não tinha ninguém que a obrigasse ao seu cumprimento. Era prisioneira de normas que não constavam de qualquer manual. Ninguém lhe pediu para ser rígida. Nunca lhe foram impostas restrições. Viveu a mandar em si própria. Muitas vezes pensava que era assim pela educação que tinha recebido mas, no final, acabava caindo na voracidade do passado e percebia que nunca esteve lá ninguém para a educar, na mesma medida que nunca teve ninguém para a repreender. Teve de se educar a si própria e por isso era seca e inerte. Por isso errou muito, e continuava a errar, mesmo sabendo que tinha de inverter o sentido dessa inevitabilidade. Mas não sabia viver a vida noutro prumo que não fosse o desalinhado. E nas profundezas da sua mente sabia-o tão bem que passava os dias a rezar para pedir perdão. E era esse o único prazer a que se permitia: rezar. Rezava de Sol a Sol, antes de iniciar os trabalhos da casa e mais tarde, quando ia trabalhar. Quando regressava a casa, exausta, da indignidade que trazia no corpo, ainda arranjava forças para rezar mais e mais. Era nessa altura que percebia o quão desviado o seu caminho havia se tornado. O quão tresmalhada se tornou aos olhos do Deus que adorava.
Recordava-se, então, da sua irmã Beneditina e do caminho imaculado que tinha optado trilhar. O caminho que ela tinha tido oportunidade de fazer, de mão dada com sua irmã, mas que acreditou puder fazer sozinha, fora das quatro paredes de uma cela. A liberdade que julgava não alcançar no convento, alcançou nas ruas fétidas e nojentas de cor cinzenta, amarrada a dinheiro podre vindo de mãos incognitamente nojentas que lhe marcavam as carnes do corpo. O seu corpo, que podia ter entregue à candura de Deus, rebolava-se agora por homens que desconhecia, em quartos e becos pocilguentos, cobertos de doenças e histórias inenarráveis. Por vezes também rezava enquanto pecava. Alivia-lhe a alma. Deixava a mente fugir dali e passear-se pelos jardins do convento de sua irmã. Por momentos, enquanto era possuída, acreditava que a sua fé em Deus a havia de salvar dali e que, na hora em que fosse chamada lá acima, Ele seria justo para com a mulher pecadora que nunca dormia sem antes rezar.
A irmã Beneditina, benta de nascença, não conheceu outro trilho que não fosse o do bem. Pura e casta, não deu apenas as mãos à religião, casou-se com ela logo no primeiro dia de noviça. Se outros caminhos haviam para percorrer na vida, ela nunca os conheceu nem queria. Nunca olhou para o lado. Nunca soube que o seu corpo e mente lhe podiam servir também a ela e não apenas a Deus. Entregou-se apenas a Ele. E não foi enganada. Mulher feita, de peitos firmes e coluna vertebral hirta, sabia bem que a entrega de corpo e alma que se falava no convento, não o era de forma tão literal quanto o praticava.
Com isto, ganhou barriga às contas das orações fora de horas e dos encontros nada bentos na sacristia. Tinha o menino nos braços não tardava nada e já não tinha santo a que orar, por saber que as suas preces não iam mais ser atendidas. Estava aterrada de medo, não pelo sucedido mas pelo medo de ser descoberta e devolvida às ruas porcas que acolhiam a irmã. Pensava para si que o seu corpo, fecundado como o de um animal, não havia de ser de mais ninguém. A salvação de uma valeta, e de uma vida de prostituição quase certa, não chegaria se não agisse sem coração. Não bastando a prevaricação original ainda coroou a maldade de morte. À hora do nascimento deu-se também a morte do filho do seu pecado. Abafado no hábito da mãe, nem nunca soube o que era o impulso de uns pulmões para respirar.
Estava salva de um destino que conhecia grotesco. Congratulou-se por conseguir subtrair o problema da sua vida. Nunca se lembrou de Deus, nem do que Ele lhe ensinou, nem naquele dia, nem nos mil dias que se haviam de seguir.
Na corrida ao céu só havia lugar para uma das irmãs.
Deus ficou confuso. Não sabia quem havia de mandar subir.