17.8.12

O fato da senhora M.



A senhora M. vestia todos os dias o mesmo fato. Vestia todos os dias o mesmo fato, há mais de quinze anos. E nesses quinze anos o seu fato já tinha estado ora apertado, ora folgado. Ora puído, ora lustroso. Nuns dias o fato parecia assentar-lhe na perfeição mas em muitos outros dias nem se conseguia olhar ao espelho. Achava aquele fato um truque de ilusionismo do qual não se conseguia livrar. Por vezes odiava-o e queria um novo mas não sabia como o conseguir. Angustiava-se. Sofria sozinha. Silenciava a dor. Sonhava que um dia acordava e tinha um fato novo. Ali mesmo, sem esforço. Mas no fundo do seu ser sabia que isso nunca iria acontecer. E então lá continuava, atormentada com a realidade, a tentar mudar qualquer coisa que fosse no seu fato, sem saber como. A dar-lhe a graça que não tinha.
Por vezes, a senhora M. ganhava coragem e lá se dispunha a fazer umas pequenas emendas no fato. Cortava ali, cozia acolá. Apertava de um lado, esticava para o outro. Mais umas pregas, umas bainhas e, por vezes, muito raramente, até parecia que a coisa se ia ajeitar. Mas a costura não era o seu condão e acabava por desarranjar o que parecia já estar bem alinhavado. Era trapalhona e não sabia cuidar bem do seu fato. Acabava a estragar, logo depois, o pouco que tinha conseguido fazer.
Uma coisa era certa: aquele fato não pertencia à senhora M. e a senhora M. nunca gostou daquele fato.
A cada dia que passava ganhava-lhe cada vez mais aversão. Queria acabar com ele. Queria sentir-se linda num fato novo. Fazer girar cabeças na rua. Soltar comentários elogiosos das bocas de homens e mulheres. Queria que vissem linda por fora, como sabia ser por dentro.

Um dia saiu à rua com o peito cheio de coragem para comprar outro fato. Voltou para casa, de braços rendidos e de tristeza desenhada no rosto. Desistiu de comprar o fato. Desistiu de mostrar uma coisa que não era.
Entregou-se ao inevitável. Passou o velho fato a ferro e voltou a vesti-lo. Continuou assim, infeliz, de braços estendidos, à espera que um dia alguém lhe veja a beleza, tal e qual como ela é.

O fato até podia ser medíocre, mas foi o único que a senhora M. teve, e aquele com o qual teve de aprender a viver.





4 comentários:

  1. Um texto bonito e ao mesmo tempo muito triste.
    Gostei muito Inês.

    bjs

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  2. Sabe quando levas "um tapa com luvas de pelica?"Pois, foi o que teu texto fez a mim.Resignei-me.Mas ainda não me rendi!Lindo texto, mesmo triste!!!Bjs

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