18.11.13

A Grande Semana




Sais de casa bem lampeira.
Compões o cinto de segurança sobre o casaco para não o amarrotar. Olhas feliz para as botas de salto que escolheste hoje, logo hoje, e que há tanto tempo não calçavas porque "não me dá jeito ir de saltos altos". Ajeitas os pés para não riscares as botas nos pedais do carro e arrancas com cuidado para te habituares à diferença dos saltos. Está um frio dos diabos, o carro não tem AC nem DC nem coisa nenhuma que aqueça mas tu aguentas. Porque tens de aguentar, porque são só 5 km até ao trabalho, e porque não tens outro remédio. Se queres um carro melhor, arranja-o. Andas 100 metros e o carro morre. Morre porque tinha de morrer. E tu bem sabes que sim, por isso sais do carro, ligas a uma amiga para te ir buscar e nem mudas de botas de saltos altos para botas sem saltos porque estás tão embriagada com isto tudo que nem te dás conta de nada. À noite chegas a casa, realizas que a tua liberdade foi-se desta para melhor, ligas ao reboque, ao mecânico e à mãezinha para chorares, e depois metes a cabeça na almofada que amanhã é outro dia e faz de conta que o carro vai estar outra vez à porta pronto a pegar. De manhã percebes que não tens carro. Ligas a uma amiga para te ir buscar. Sentes-te um peso. Ligas ao mecânico na esperança de ir buscar o carro ainda hoje e percebes que o carro não se safa, que morreu, que vais ter de comprar o passe de autocarro, que não há autocarro da tua casa para o teu trabalho, que demoravas cinco minutos de carro e agora vais demorar uma hora para cada lado.
Sentes-te fodida.

Abres o teu computador de estimação.
Custou-te os olhos da cara, é branquinho, tem design, e mais nenhum amigo teu tem um. Gostas mesmo do teu computador. Precisas dele todos os dias, ora escreves, ora vais à net, ora tratas umas fotografias, ora ouves umas músicas. Um dia, naquele dia em que menos te dava jeito, ele deixa de funcionar. Não consegues aceitar. Há meses que ameaçava morrer, que falhava aqui e ali, mas não, uma máquina destas é para a vida, nunca avaria e isto não passa tudo de um engano. Mas o computador morreu. Ligas a um amigo, pedes o contacto do melhor sítio para o arranjar, levas o computador ao senhor doutor e ficas semanas sem saber alguma coisa dele. Chega um mail, diz que é pouco, que é só uma peça, que não é nada de especial.
Dizes para avançarem com o arranjo - que alternativas terias tu? - e eles dizem-te o orçamento e o orçamento nunca te poderia agradar. Tentam vender-te mais um programa, e uma atualização, e uma limpeza e uma desinfecção e tu nem dinheiro tens para mandar trocar uma tecla e só tens vontade de os mandar cagar mas tens de te aguentar que mais ninguém tem culpa da vida que tens.
Foda-se! 

Estás sem carro e sem computador.
Já não podes ir de saltos altos para o trabalho. Chegas a casa já nem podes ir à net.
Resta-te apenas a tua pessoa. O que és. O teu físico. Safou-se, pelos menos a tua condição física. A integridade de poderes levantar-te, arranjar-te, sair de casa de cabeça levantada e ir trabalhar com cara de quem tem a melhor vida do mundo mesmo que seja encavada a toda a hora.
Há um dia em que pensas tudo isso. E depois há os outros dias.
Como o dia em que acordas de manhã e tens uma puta de uma conjuntivite que te atacou a cara toda como se fosses uma folha de papel vegetal consumida por beatas de cigarros.
Em que nem sabes se abres ou se fechas os olhos, em que pareces ter levado tiros nos olhos e por isso jorram sangue, em que olham para ti como se tivesses lepra, em que tens de andar de óculos escuros no trabalho, em que, pior!, metes os óculos escuros por cima dos óculos de ver no trabalho. Em que fazes aquela puta daquela figura, com a qual gozaste durante tantos anos, que a tua tia velha fazia quando entrava de óculos escuros no café. E tu só tens 32.
É aquele dia em que o oftalmologista te faz um diagnóstico por tentativa/erro mas começa sempre pelo erro para quando chegar a acertar tu já só dares graças a Deus por estares viva, apesar de pareceres ter moléstia dos coelhos.
Em que uma córnea rasgada ou um herpes ocular te parecem sentenças de morte e por isso recebes de braços abertos a puta da conjuntivite que te fez parecer ter cento e vinte cinco olhos pequeninos na cara, em vez de apenas dois.

O teu namorado, com o sentido de oportunidade de um cobrador de impostos, aparece para uma visita. Depois de vinte e um dias sem lhe meteres os dedos em cima.
Con-jun-ti-vi-te!
Não beijos. Não coiso. Não coiso, coiso.
Período. Sempre o período. Gosta de festas. Também eu. Cabrão.
Herpes. Labial.
Herpes. Conjuntivite. Período.

Foda-se...



7 comentários:

  1. Só faltava o Sporting ter perdido. Ou só haver mau vinho em casa...

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    1. Já viu bem o difícil que é ser a minha pessoa?
      E isto de ser do Sporting também não ajuda nada a saúde de uma pessoa.
      Só me valeu mesmo o bom vinho [mas não basta o bom vinho, meu caro, não basta! De que vale o bom vinho se depois chego ao trabalho e fico aprisionada ao mui duvidoso gosto musical de um chefe ditador? E reconhecerá que ouvir má música é o mesmo que beber 1 litro de Casal da Eira, por isso a vida não me sorri só por causa do bom vinho, que há outra coisas, muitas outras, que contribuem para uma mulher ser feliz, não acha?].

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  2. Se me conhecesse... Ai, se me conhecesse... Saberia que chego à fase do desabafo quando, para trás, já estão coleccionados episódios bem mais improváveis que estes.
    Estes momentos que aqui partilho são migalhas.
    Apenas migalhas desta vida de mártir.

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  3. Safaram-se as castanhas e a vinhaça!! :) Vá, nem tudo foi mau!! :) E olha: tens amigos! :) E carro, já tens???

    Beijo

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    1. Ó Mauro, o vinho era uma valente m**da. Fiquei com uma capa de borracha bordeaux nos dentes durante dois dias.
      E sim tenho carro... o Tócarro :) (tanto jeito para piadas que eu tenho).
      Olha que se não fossem os amigos esta semana, nem sei bem para que me lado me virar.
      Vocês são são maiores!

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