"Caro José Saramago,
Lamentavelmente, sei-o morto. Não se inquiete, não lhe venho pedir que volte ou, tampouco, dar-lhe más notícias do lado de cá. Creio que todos os que lhe são queridos estão bem, caso contrário tal agoiro saber-se-ia à velocidade dos impropérios saídos da boca do povo, que sempre fala do que não sabe. Também não o venho evocar, que esta coisa de acreditar no além nunca lhe foi assunto caro, bem o sei.
O que me traz até si, tantos anos depois de desavinda com a sua pessoa, é a vontade de lhe pedir perdão. Pedir perdão e reconhecer-lhe o valor como homem, que durante tempos sem fim desconfiava ficar-se-lhe ao nível da sola dos sapatos. Na verdade achava-o um pobre miserável, pouco mais que ignorante, com a arrogância de manipular a língua-mãe como bem lhe aprouvia. Sem credo e sem temor a Deus. Um real néscio numa figura prepotente. Um ressabiado. Julgava-o descrente apenas da boca para fora, para esconder a fé desmesurada contra a qual lutava. Apenas via em si o ódio de quem, apesar da idade, ainda não tinha aprendido a viver, nem aprendido nada com a vida. Uma revolta apenas comparável à de uma de colegial a quem não foi satisfeito mais um inútil capricho e por isso amua de beiço estendido.
Caríssimo José, como eu estava enganada.
Como me penitencio por estar enganada. Como me satisfaço por ainda assim o reconhecer.
Lidos os seus livros, conhecida a sua vida, rendida à sua história de amor, não me resta senão estreitar a garganta de engano e embaraço.
Que notável homem foi, José! Que grande ser humano se encontrou nesse corpo! Nesse velho corpo onde ser escritor apenas coroou a excepcionalidade do génio em que se tornou.
Afinal, a sensibilidade que carregava no seu peito, era maior que aquela que carregava nas letras. Enganou-me bem. O seu amor pelos Homens não tinha fim e o amor pela vida doía-lhe por saber de um final inevitável. Amou a todos de modo mais ou menos severo mas entregou-se a tudo com as ganas de quem cresceu sem esse amor. Finalmente rendeu-se quando encontrou o mais literal dos pilares. Amaciou-se, e fez-me vê-lo doce, quando a velhice lhe chegou à pele. Os velhos são o meu conforto confesso. Passei a encontrar em si uma ternura que acreditava perdida para sempre entre as palavras agudas dirigidas a Deus. O mesmo Deus que o baptizou, ironicamente, com o nome de seu pai. Talvez soubesse que um dia o iria vergar. Sabia, com certeza, que um dia o iria receber.
É por este reconhecimento de homem bom mesclado de escritor genial, que não podia continuar sem lhe pedir perdão. Sem lhe dizer que gostava de o ter conhecido. Sem lhe contar quantas vezes me imaginei em Lanzarote à conversa consigo, pela paisagem despida e insaturada. Sem confessar que, se as nossas vidas se tivessem cruzado, eu me teria apaixonado por si.
Assim, na solidão das palavras que deixou, choro cada dia que o julguei em vez de o ter tentado compreender. Perdoe-me.
Espero que guarde junto a si estas sinceras palavras, para que um dia, juntos, as possamos reler.
Com toda a estima,
Um até breve!"
Porque hoje José Saramago faria 89 anos.
é assim a sociedade, a multidão, o zé-povinho, "nós": faz alguém passar de Besta a Bestial, e de Bestial a Besta, assim... num ápice...
ResponderEliminaré claro que é bom ter a capacidade de mudar de opinião, após maior conhecimento de causa. o que estará menos bem é apelidar, catalogar, opinar com tão pouco conhecimento de causa... mas todos o fazemos, mais ou menos, e quem brilha e atinge sucesso, é alvo inevitável e depressa será Bestial, mas com a mesma velocidade passará a Besta. No seu caso, com o Saramago parece que foi de Besta a Bestial...
sempre "gostei" de Saramago. das palavras e do homem.
Olá Maria!
ResponderEliminarBem-vinda!
Prestei homenagem da melhor maneira que soube... da melhor maneira que senti. Não sei se a genuinidade deve ser punida, mas não o poderia ter feito de outra maneira. Se mudei de opinião, ainda bem, ou este texto teria um agror difícil de tragar e, para isso, melhor seria ficar-se pela gaveta.
É bom mudar de opinião. Areja-nos os conceitos.
saramago. para mim, um dos escritores mais inteligentes e mordazes do século XX.conheço-o desde os 13 anos... não foi amor à primeira frase, mas foi amor ao segundo livro, o evangelho... a partir daí nunca mais consegui largá-lo.
ResponderEliminarnAnónima