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Fechava e abria, 6 vezes por dia, todas as 645 portas de ferro. Fechava e abria as portas de ferro 3870 vezes por dia, dando duas voltas a cada trinco. Rodava, portanto, as chaves 7 740 vezes por dia.
Percorria 1 290 metros de corredores 6 vezes por dia. Palmilhava, por isso, 7 740 metros todos os dias. Tantos metros quanto as voltas que dava a todos os trincos de todas as portas, todos os dias.
Entre voltas aos corredores e voltas aos trincos, ocupava 18 horas do seu dia, todos os 7 dias da semana. Empreendia 126 horas todas as semanas entre voltas nos corredores e voltas aos trincos. Depois de um ano, lá se iam 6 552 horas naquelas voltas. Sobravam-lhe 1 188 horas.
Parecem muitas horas, mas restavam-lhe apenas 1 188 horas num ano para poder dormir e cumprir com as suas necessidades básicas, mas não se importava. O mais importante era continuar a abrir e a fechar todas as portas. A guardá-las bem guardadas. A sua missão mais importante era nunca se deixar evadir daquelas 645 portas de ferro.
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- Diga-me: consegue encontrar dentro de si a razão por que se sente assim? Consegue visualizar-se e verbalizar?
- Não doutor… Bem, quer dizer, sim. Talvez consiga dizer que me sinto vazia e perdida e que tudo está escuro. E como está escuro não consigo ver nada. E depois, apetece-me fechar os olhos e dormir dias seguidos. Mas não sei porque estou assim. Não, acho que não sei explicar.
- Mas sabe que todas as respostas estão dentro de si? Estão dentro de si todas as respostas, porque também é dentro de si que estão todas as perguntas. Procure-as sem medos. Sabe, por vezes criamos mecanismos para não as encontrarmos, simplesmente, para não nos confrontarmos com essas respostas. E é mesmo “simplesmente”, porque na realidade é um processo básico para eliminarmos do nosso caminho, aquilo que nos é desagradável.
- Procurar-me. É isso que não consigo. Não consigo, também por isso, encontrar-me. Estou dentro de um labirinto, que tem outro labirinto lá dentro que, por sua vez, nunca mais termina… Fico exausta com esta confusão dentro de mim. Sinto que preciso “arrumar-me”. É isso mesmo.
- Vê? Conseguiu visualizar-se e verbalizar. É um grande avanço. Continue. Que mais vê?
- Mas estou perdida quando tento organizar as ideias. Sinto que precisava arrumar tudo em gavetas e etiquetá-las. Inventariar todos os assuntos e arquivar um por um. Mas perco-me durante o processo e volto aos labirintos. E volto ao escuro e à vontade de dormir para sempre.
- Então terá de imaginar-se num contexto fechado e limitado. Em vez de um labirinto infinito, imagine-se, por exemplo, num edifício. Por maior que seja. Limite o seu campo de acção. E essas gavetas de que tão bem fala, imagine que são salas que estão fechadas e precisam ser abertas, descobertas, deslindadas e, finalmente, trancadas e deixadas para trás. Nunca mais lá voltando. Feche os olhos todos os dias durante uns minutos. Mas feche mesmo e evada-se.
- Mas doutor, e se eu nunca mais conseguir sair desse edifício? E se eu nunca conseguir abrir e fechar todas as portas? E o que acontece se eu me perder? E se durante este processo eu descobrir cada vez mais e mais portas, mais e mais salas? Algum dia vou dali sair?
- Está sozinha nessa prisão. Faça por si, ou ninguém fará.
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Há mais de 21 anos que todos os dias fechava e abria as mesmas portas. Ou abria primeiro e depois fechava. Assim é que era. Em pouco mais de 21 anos, passou 7 740 dias a vigiar os seus 645 medos. Não lhe sobrou tempo para mais nada. Preocupada com a vigilância daquelas 645 portas durante as 6 552 horas de 365 dias, nunca parou para pensar que poderia ter tido mais tempo para viver se, em vez de duas voltas a todos os 645 trincos, tivesse dado apenas uma, lhe teriam sobrado 3 780 voltas todos os dias. Que teria mais 63 minutos todos os dias para viver outras coisas. Que depois de 365 dias, teria mais 22 995 minutos para pensar num plano para fugir da prisão em que vivia. Podia ter encontrando uma fuga. Podia ter-se dado oportunidade de espreitar para fora das portas de ferro em vez de passar o tempo a tentar abri-las e fechá-las. Podia ter desistido de dar voltas as trincos e teria duplicado a possibilidade de fugir dali. Mas preferiu agarrar-se a uma equação sem solução e por cima ainda lhe rabiscou um teorema. Nunca parou de fazer contas inúteis para um resultado que se sabia nulo. Caramba, bastava ter tentado abrir a porta da rua. A porta número 646 que ela nunca viu. A solução estava mesmo à sua frente.
Sinto a pujança da metáfora, DC! Lindíssimo!
ResponderEliminarEncontrei a solução em teu belíssimo texto, dizer isto é uma redundância, mas não me contenho.A porta da rua me aguarda, e era tão simples e ali estava, como não percebi? Como não vi?? Somos - ou os tornamos tão complexos - que esquecemos, por vezes, que a simplicidade também pode ser uma saída!A porta da rua!!!Obrigada, DC!
ResponderEliminarE aqui ficava bem, em jeito de banda sonora, a música 'Prisão em si', dos Xutos e Pontapés
ResponderEliminarhttp://www.youtube.com/watch?v=oXp0ZAvL9PY
Muito bom, como sempre, Noites Caninas...))
É tão fácil, não é? :)
ResponderEliminarA vida feita esquemas, labirintos redondos, a vida das voltas, dos ciclos repetidos, do gira gira, a vida que não é, a vida que se abre e se fecha, a vida da dívida, das duas ou da volta única, a vida assim assim, a vida dos horizontes abertos mas impedidos pelas grades...
ResponderEliminarA vida arrumada, a vida engavetada, a vida organizadinha...
A vida solta, a vida livre, a vida a sorrir, a gostar...
A vida de encantos... a vida de amor...
Beijos vivos
Raul
Obrigada a todos pelos comentários.
ResponderEliminarGosto de vos ter por perto ;)
Ainda não tinha lido este teu texto. Uma amiga aconselhou-me a fazê-lo. Em boa hora! A porta está sempre lá. Haja coragem para a abrir! "The important thing in life is courage. Talent is luck." Woody Allen
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