Uma pessoa, de vez em quando, lá mete a mão na consciência e percebe que ser infeliz é outra coisa.
Não sei se estou mais atenta ao mundo ou se o mundo
está a piorar de tal maneira que é impossível não reparar em certas coisas, mas
de há uns tempos para cá parecem somar-se cenas inimagináveis à minha frente.
Nunca fui uma deslumbrada com os bens materiais e com o dinheiro, mas reconheço
o conforto que trazem. Creio que numa análise honesta à nossa consciência,
todos sabemos disto e todos preferíamos ter algum a mais, do que passar a vida
a contar os tostões. E não me venham dizer que não.
Posto isto, acho que ainda estou no direito de me
indignar com os extremos que vejo entre as vidas de uns e de outros. Como nunca
tive luxos e na minha vida adulta passei a viver, apenas e só, do meu
ordenado, ainda consigo ter distanciamento para ver o que é ser absurdamente
pobre e ser absurdamente rico.
Num destes dias fui abalroada por uma realidade
que, uma pessoa até sabe que existe, mas pensa sempre que nunca irá ser confrontada.
Ou pelo menos que não terá de confrontar-se com as situações e dissecá-las até
as compreender.
Depois de ouvir um bêbado a gritar, em plena
Avenida da Liberdade, com um dedo em riste sobre um prédio de apartamentos de
luxo que ali se prepara para aparecer, que "estes filhos da puta gastam
aqui alguns cinco mil euros e um gajo a passar fome. Ladrões"...
Ficou claro para mim que não temos todos a mesma noção do valor do dinheiro.
Nem se trata de termos todos acesso a ele da mesma maneira, porque isso há
muito que se sabe que não, mas a questão de tampouco saber localizar o devido
número de zeros à direita de outro número, foi algo que me empurrou para sítios
que eu não conhecia na mente. Fiquei algures entre o chocada e o lúcida.
Como Deus nesse dia tinha algum tempo disponível
para mim (pena que não tenha noutros dias para outras coisas), fez-me esbarrar
noutra cena nauseante. Eu sou uma pessoa com sentido de humor e
sarcasmo quanto baste, mas há ironias que eu dispenso. Passar pela montra da
Prada e ver um homem bem constituído, relativamente arranjado e limpo, a vasculhar
no lixo mesmo ali ao lado, ainda me deixa perturbada com o que o universo
prepara para as pessoas. Naquele dia parei na montra da Prada apenas para me
confrontar. Para ver que era real um homem, com fome, estar a vasculhar num
caixote do lixo, mesmo em frente de uma mala que custa umas largas centenas de
euros, que uma senhora irá comprar por capricho e usar uma ou duas vezes. Quis
confrontar-me porque, noutra escala de consumo, eu sei que também compro
coisas desnecessárias para satisfazer um impulso consumista.
E para ir para casa sossegada e de cabeça no chão,
Deus, esse grande gestor de recursos humanos, mandou estacionar dois Bentleys
na Avenida, fez descer de lá umas senhoras muito bem postas, e
esqueceu-se de tirar os dois mendigos enrolados em cartões a dormir nos bancos
do jardim em frente. Erros de logística Deus, erros de logística. Toca a
melhorar isso, senão a malta começa a deixar de acreditar.
Uns dias lembro-me de todos os pormenores, outros a
coisa atenua-se, mas noutros levo machadadas de morte mesmo em cheio no
esterno.
Como o meu cérebro se ocupa pouco a pensar em
coisas que não devia, ainda sou brindada com momentos tristes vindos do meu
próprio sangue. Quando à simples pergunta "o
que é que a miúda precisa para os anos?", me respondem "ela gostava muito de ter um telemóvel android raios - que - a - partam - que - tem - 13 - anos - e - ainda - não -
ganha - para - o - sustentar"... Eu só tenho como alternativa pensar
que sou eu que ando ao contrário do mundo.
Então eu vejo um homem feito, a tirar comida do
meio do lixo, e esta fedelha quer um telemóvel de umas centenas de euros para
mandar mensagens às amigas. Pior! Muito pior! Pergunto se não há nada de útil
que precise e dizem-me que “como
cresceu não tem roupa nem sapatos para o próximo Inverno”...
Puta que pariu!
Ai não tem roupa nem sapatos, mas bora lá pedir a
esta otária um telemóvel de gajos ricos.
Puta que pariu, outra vez!
Mas desde quando isto é ensinar valores aos miúdos.
Desde quando isto é querer o bem de um filho quando não se lhe dá a conhecer o
valor das coisas. Parece-me que sei bem que educação teve o bêbado que achava
que aquela obra custava alguns cinco mil euros!!!
Para terminar em grande, e porque não sou pessoa de
me deixar sufocar sem tentar sobreviver primeiro, e porque estas histórias
todas já estavam a fermentar cá dentro, este fim-de-semana houve um momento derradeiro
e revelador que me fez tomar uma atitude. Num reallity show, a protagonista mostrava-se indignada por a enteada de 18 anos ter
comprado uma mala Hermés, de cerca de cem mil dólares, para
"destruir" em fins artísticos (sim, sim, já sei... tudo pela arte!).
Uma "irresponsabilidade social". Foi assim que ela se referiu à compra da mala.
Como uma "irresponsabilidade social".
Aquilo atingiu-me.
Não foi pela mala ou pelo uso que a miúda fez do dinheiro. É lá com ela.
Foi por, noutra escala, me ter visto naquele papel.
Ontem entrei no closet (só isto é indicia logo
problemas).
Tirei tudo lá de dentro.
Tirei tudo dos varões, das gavetas e das
prateleiras.
Percebi que acumulava coisas por irracionalidade
emocional, por não saber relativizar que se trata apenas de roupa. Por não
saber ser pragmática.
Ontem, eliminei quase metade da minha roupa e é
evidente que ainda sobra.
Exponho aqui sem vergonha, apesar de ter todas as
razões para a ter, que havia roupa que já nem me lembrava que tinha. Roupa que
vesti uma ou duas vezes e deixei de gostar (talvez já não gostasse assim tanto
quando a comprei). Roupa velha que jamais voltaria a usar. Roupa cara que
comprei por capricho. Roupa que há muito deixou de me servir. Roupa que
alguém lá fora precisa e eu andei a guardar apenas por me dar um sentimento de
conforto e segurança e não por precisar realmente.
Enfim...
Fazendo contas ao resultado final e para quem gosta
de números:
- Cerca de 70 peças de roupa.
- Cerca de 20 peças de roupa interior.
- 15 kg no total.
- 1/2 guarda-fatos vazio.
- 3 gavetas vazias.
- Mais de 20 cabides vagos.
- Dinheiro... muito, mas no meio de tudo o que isto
implica, isso é o que menos me preocupa.
Por estes dias, a roupa seguirá para quem realmente precisa e, apesar de
não estar ilibada da minha responsabilidade social, sinto que ter consciência
já é um bom avanço que convém não abandonar.
Tanta coisa que podia dizer sobre este tema, tanta... mas sabes, desde pequena que tudo isto que falas me atormenta, mesmo! Talvez por isso nunca tenha conseguido acreditar num Deus!
ResponderEliminareu sou ateu
ResponderEliminarAdoro o teu blog e cada post é uma delicia de ler
Visita tambem o meu...a sondagem do lado direito te aguarda
Beijocas charmosas
É a triste realidade, os ricos cada vez mais ricos, os pobres cada vez mais pobres, e mais! O fosso que separa as pessoas...
ResponderEliminarCaríssimos, entretanto, chegaram-me pedidos de pessoas que precisam da roupa que tenho a mais. Alguns pedidos pessoais, outros de instituições.
ResponderEliminarUma delas agradece a divulgação e por isso aqui fica:
Igreja de Santa Maria dos Olivais, em Lisboa
Partilha Fraterna: 960026799
Por favor, pensem nisto.
Existem centenas de sítios onde entregar roupas e muitas outras coisas que já não precisamos/usamos.
Mandar para o lixo ou continuar a ignorar o problema dentro de casa é que, nos tempos que vivemos e se avizinham, não é sensato.
Obrigada a todos!
Penso que, demasiadas vezes o nosso maior problema é a incapacidade de agir, acomodamo-nos e ficamos à espera não sei bem de quê.
EliminarRacionalmente, todos sabemos que o que não usamos fará falta a alguém, mas quem?
Nem todos sabem onde entregar as coisas, e algumas instituições não nos «inspiram» confiança.
Deixo mais algumas:
O Companheiro (faz a integração no mercado laboral de ex-reclusos). 21 716 00 18 fica mesmo ao lado do Colombo
AJPAS (Associação enorme com inúmeras valências de apoio aos desfavorecidos) 214 905 426 na amadora
Ajuda de mãe (associação de apoio às mães adolescentes)21 382 78 50 em campolide.
Beijinho,
Ana
Lampejos de lucidez.
ResponderEliminarAlgo de semelhante fez a minha cara metade, limpando o roupeiro (e a sapateira) do que já não usava, ou, como o referiste, tinha usado uma ou duas vezes.
Foram 5 sacos pretos, daqueles grandalhões do lixo, para dar...
R.