7.4.11

Mata-me



Acordaram. Não se olharam e nem se viram. Não sabiam da existência um do outro há muito. Não importava. Os seus corpos já não se conheciam e, por isso, não se procuravam para calar as saudades que não sentiam. Eram apenas duas pessoas deitadas sobre a mesma vida. Dormindo como desconhecidos, nos intervalos dos dias em que não se deitavam como inimigos. Mas os dias como inimigos rareavam. O esforço de convivência que isso comportava já não lhes valia o suor. O investimento duma troca de palavras nunca aconteceu quando se passaram a olhar como irmãos e, mais tarde, quando se passaram a olhar apenas como conhecidos e, finalmente, quando deixaram, simplesmente, de se olhar. Aquela cama já não conhece o calor. 
Levantar daquela cama de manhã era como desistir de sofrer. Acabar com o suplício de forçar um sono num lugar sem alma. Aliviar o corpo de um descanso que não teve. Ela levantava-se sempre de avanço. Ele fingia não ter despertado só para não ter de fingir que não a viu. Ela no início também fingia que não sabia que ele já estava acordado, mas com correr dos anos passou a ignorar este teatro ritualizado. E o ritual era assim há uma eternidade de tempo que ninguém merece viver. E pelo menos no acordo desse ritual ambos se entregavam com o mesmo empenho. 
Ela seguiu o caminho das tábuas de madeira corridas, que os nós tão bem conhecia por nunca os olhos do chão levantar. Os pés pesados sobre a madeira quente davam-lhe o conforto que não obtinha na cama e, por isso, caminhava lentamente, para prolongar esse prazer e não pelo tédio que se podia prever.
Ele continuou inerte. De corpo esticado sobre o colchão, olhando para o tecto, de olhos bem abertos, como se os pensamentos já não tivessem nascido nessa manhã. A sua cabeça estava vaga. E a oficina, que em tempos muito laborou naquele cérebro, parecia agora desactivada. Já não restava nada.
Nessa manhã, igual a todas as outras desde que deixaram de se olhar, um deles percebeu a insustentabilidade de partilhar o mesmo oxigénio. Percebeu que não era tarde para tentar. Soube, com toda a convicção, que não haveria de ter outras manhãs como aquela. Quis dar-se uma oportunidade. E deu.
Ele chamou a mulher ao quarto, sem se mexer do colchão, com um murmúrio difícil de transformar em palavras, por estas há muito não ecoarem pela casa. Ela pasmou-se e receou ter de manter uma conversa. Não sabia como fazê-lo. Pregou os olhos nos nós do soalho de madeira e arrastou-se de volta ao quarto. Ficou-se pela porta, olhando aquela pessoa que a chamou.
Ele está sentado na beira cama. Sem roupa. Sem cor. Sem a olhar. Vago.

Um tiro directo à cabeça.

Ela não respira. Não acredita no que acabou de alcançar. A libertação há-de ser saboreada lá mais para a frente. Sorri com os olhos, apesar de reconhecer a perversidade de o fazer. Os ombros caem-lhe leves.
O que ela não sabe é que, nesse instante, obteve o único pedaço de amor das últimas duas décadas. Recebeu a última declaração de amor da sua vida. Foi olhada pelo homem com quem se deitava.
O que ela não soube nunca, é que ele se matou por tanto a desejar e não suportar nunca ter sentido o seu calor na cama. O que ela nunca há-de saber é que foi amada até morrer.


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