4.4.11

O dom



Talvez já tenham passado seis ou sete encarnações. Talvez uma dúzia. Ninguém neste momento saberá. Já não caminha ninguém pela terra que se lembre, ou saiba, quantas vezes aquela mulher já viveu para depois morrer... voltar a nascer e logo depois voltar a morrer... e a nascer, e por aí adiante. Assim foi, e continua a ser, até que o seu caminho sobre a terra se esgote. Até que a eternidade perca sentido. Até que o seu espírito se complete e abandone o mundo material e ascenda ao sítio onde pertence. 
Mas apesar de se desconhecer a origem desta mulher, sabe-se que a sua primeira vida é anterior a Cristo e, talvez até, anterior à Dinastia Ptolomaica, o que a tornou ao longo dos séculos num espírito velho e sábio. Não velho de exausto, nem sábio de petulante, mas antes um espírito calejado pelos corpos vivos que não o estimaram, mas que muito lhe deram a saber sobre a vida, sobre as relações entre os homens e sobre os caminhos até à morte. Todos lhe ensinaram que por mais que se lute, ou por mais que se esteja conformado, a inevitabilidade da morte não se compadece com sentimentos. Todos os corpos morrem. Todas as almas vivem. E é entre essa morte e essa vida que existe um espectro que poucos tem a graça de ver. De sentir. De ser. 
Esta mulher, que ninguém sabe de onde veio, tem esse dom. Esse sentido apurado para o mundo que acontece entre a vida e a morte. Essa capacidade de compreensão das coisas que os olhos não vêm. Essa aptidão para sentir o tacto ao invisível. A habilidade de falar com os que já partiram e com os que querem voltar. Essa mulher fora abençoada. Fora brindada com um dom. Um dom que renega desde a sua primeira vida. Um milagre que nunca aceitou. Uma benção que não pediu para ter.
Ao longo dos séculos viveu embaraços - alguns que lhe custaram a vida - e viveu momentos de coroação. Foi escrava e foi rainha. Foi um zero e foi um mil. Foi tudo para alguém mas também foi ninguém para um mundo. 
Foi esta a maior beleza do seu percurso: ser todos para, mil anos depois, conhecer-nos a todos. Foi a pele de incontáveis personagens porque só assim saberia hoje descodificá-los. Soube crescer mulher e soube crescer homem para os compreender a ambos. Esta mulher foi temida, mas também foi amada. Esta mulher ouviu segredos, mas nunca teve um ouvido para segredar os dela. Esta mulher encarna e desencarna apenas para servir os outros. Esta mulher nunca atalhou um caminho doloroso por saber que o crescimento só vem por essa via. 
Por ainda não ter atingido o fim do seu percurso pela terra, esta mulher irá continuar a vaguear, perdida, escondendo o seu dom. Escondendo o seu dom por medo da inquisição. Por receio dos dedos apontados ao desconhecido. 
Apesar de todo o bem que fez à humanidade esta mulher não tem estátuas, nem homenagens, nem reconhecimento no mundo dos vivos. Mas por todo o bem que tem feito aos mortos, ela é reconhecida no "lado de lá" e, por mais sombrio que possa ser, desse lado todos a esperam de braços abertos.
Um dia o seu caminho se extinguirá. Apenas quando tiver sido perfeita. Por essa altura perder-se-á para sempre a memória dessa mulher que percorreu o mapa da história, e este mundo e o outro, como nunca antes se havia feito.
Memorável mulher que lia almas. Impressionante alma que ainda lê pessoas. 
O seu nome era Agnes. O seu nome ainda o é.





1 comentário:

  1. Envolveu todo o corpo em cota de malha de aço, fechada com cadeado cuja chave perdeu não sabe onde nem quer saber, porque está rodeada de mentira. Resistiu até à morte, às várias vidas e foi martirizada não sei quantas vezes. E hoje, Agnes continua viva, e ainda bem...! Este mundo não precisa de “virgens mártires”, não as merece nem sabe o que fazer com elas. Os altares hoje são ornamentados com cadáveres, vivos ou mortos, tanto faz.
    Gosto da Agnes! Aprendi muitas coisas com ela!

    Obrigado Inês

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