Quando era muito pequena, ainda não sabia ler nem escrever, preconizei aquele que havia de ser o meu maior exercício de humildade. Ou pelo menos o mais emblemático e que me viria a servir, no futuro, de termo de comparação com outros momentos idênticos. Tive consciência dele apenas uns anos mais tarde mas sei que foi nessa idade, em que os dentes de leite ainda estavam para ficar, que comecei um percurso de auto-análise. De tomada de consciência. De uma das muitas lições de vida que viria a ter.
Nesse tempo, em que era ginasta, tinha muita vaidade em ser a menina que era escolhida para a linha da frente da formação. Aquela que todos conseguiriam ver a fazer as cambalhotas, os pinos e as espargatas. Um orgulho. Gostava do aprumo do maillot azul com a gola de marinheiro. Do pequeno apanhado no cabelo. Da pose de pequena diva da ginástica, com as costas rigorosamente direitas e rígidas.
Até que um dia, passados meia-dúzia de anos, descobri em casa da minha prima, que também tinha pertencido ao mesmo grupo de ginástica rítmica, uma cassete de vídeo que o meu tio tinha guardado, religiosamente, com uma autocolante a anunciar "Sarau de ginástica 1985".
Eu e a minha prima lá fomos ver a cassete e eu, como é óbvio, transparecia uma evidente segurança de que iríamos assistir apenas a mais um grande momento da minha infância, cheia de genialidade. Mas o que acabei a ver foi uma menina, perdida no meio de outras meninas. Com um maillot azul com gola de marinheiro, igual ao de todas as outras meninas, agarrada a uma boia, a uma bola, a um arco e a tentar encontrar o X no chão que indicava a minha posição e completamente interessada em chamar a atenção do público em vez de cumprir a minha rotina.
Nesse dia vi a menina que não conseguiu fazer o pino depois de três tentativas esforçadas, apesar de, nas minhas felizes memórias, apenas recordar um sarau fora de série em que eu tinha cumprido o que esperavam de mim, com grande sucesso.
Foi preciso meia-dúzia de anos depois para ter o meu exercício de humildade.
Foi preciso meia-dúzia de anos depois para ter o meu exercício de humildade.
Coloquei em perspectiva aquela nova consciência e soube, a partir daí, que o que achamos de nós nem sempre é o que realmente somos. Aprendi, a partir desse dia, que afinal prometo muito e realizo pouco. Que sou uma fraude.
Aprendi que era escolhida para a linha da frente pela conveniência de ser a mais pequena e não por ser a melhor. Aprendi que só temos uma oportunidade para fazer o nosso melhor e que as restantes tentativas são apenas o aumentar do número de falhas.
Trinta anos volvidos e fui obrigada a lembrar-me do meu maillot azul com gola de marinheiro.
Relembrei, com a dor de quem se viu humilhado, que as expectativas sobre mim não se cumpriram e que, ainda assim, havia uma lição a reter daquele momento: a lição de humildade.
Hoje, perante um júri de mulheres e homens adultos, em que me defendi, defendi um trabalho suado e sofrido, e em que fiz o pino à primeira e sem quaisquer ajudas, voltei a ter a minha lição de humildade.
Erradamente, defendi que o papel de um arquitecto, quando passa por intervir num edifício histórico, deve ser mais modesto e menos centrado em si e que, resumidamente, se trata de um exercício de humildade para um arquitecto assumir a responsabilidade de intervir num edifício sem impor a sua marca.
A referência a "um exercício de humildade" foi mal acolhido por uma troika de divas que, naturalmente, adoram tudo nesta vida menos o conceito de humildade.
Erro o meu.
Para mostrar interesse em esclarecer todas as questões, a menina do maillot azul que nunca concretizava o pino à primeira, ainda tentou explicar que "humildade", naquele contexto, significava respeito. Respeito pela pré-existência, pelo edifício, pela sua história.
Segundo erro.
Dois conceitos, altamente desconhecidos para os jurados num dia só: Humildade e Respeito.
Admito que foi puxar pela minha sorte, esquecer a minha sina e gozar com o meu karma, mas ninguém me iria defender a não ser eu própria. E preferi arriscar a ficar parada a ver os outros brilharem com as piruetas. Mas voltei a ser colocada na primeira fila.
Admito que foi puxar pela minha sorte, esquecer a minha sina e gozar com o meu karma, mas ninguém me iria defender a não ser eu própria. E preferi arriscar a ficar parada a ver os outros brilharem com as piruetas. Mas voltei a ser colocada na primeira fila.
Naquele momento senti-me pequenina. A fazer investidas contra a esteira, uma e outra vez, sem nunca conseguir fazer o pino.
Tive o meu exercício de humildade.
Pelo menos hoje, alguém o teve.
Conceitos como humildade ou respeito não abundam no meio académico português!O problema não será seu certamente.
ResponderEliminarE no entanto, a humildade e o respeito são a chave de tudo o que nos torna humanos e, em última análise, no que nos permite concretizar o nosso destino de seres que procuram a felicidade. Seria um lugar comum dizer, como Gedeão, que as divas do dia-a-dia não sabem, nem sonham, isso?
ResponderEliminarLamento, por ti, que não tenham alcançado quão profundo é o que propões. E sobretudo, que essas "cobras em fatos" (ou togas, ou o que seja), cheguem onde chegam, sem saber o mais básico dos básicos sobre o que representa ser "pessoa".
Bom dia!
Fala-se imenso em crise económica, crise financeira, mas não se fala muito na crise de valores... Tenho um reguila com 6 anos, e assusta-me que a maior parte dos valores que lhe estou a passar, ou a tentar passar, depois tenham que eventualmente ser atirados para segundo plano, caso tenha que ser submetido a uma prova do género da tua...
ResponderEliminarEnfim...
"Erradamente, defendi que o papel de um arquitecto, quando passa por intervir num edifício histórico, deve ser mais modesto e menos centrado nele e que, resumidamente, se trata de um exercício de humildade para um arquitecto assumir a responsabilidade de intervir num edifício sem impor a sua marca." acho que estavas certa. A ideia é que no final mal se note que andou por lá um arquitecto (pelo menos segundo os bons que já puseram os egos de lado).
ResponderEliminarLamento a tua má sorte. Infelizmente está este país cheio de gente assim.
ResponderEliminarR.
Agradeço os comentários e o consolo de todos.
ResponderEliminarEstava a precisar.
Resta-me só apontar que estou muito satisfeita comigo. Com o que fiz e com o que defendi.
Com isso posso dormir descansada.
Só lamento que o resultado não tenha estado em concordância com o trabalho apresentado e, sobretudo, lamento que se confundam assuntos, pessoas e histórias passadas e que exerçam o seu pequeno poder no momento errado. Com a pessoa errada. Tiveram o seu momento de vingança e devem sentir-se melhores como pessoas, e isso é que importa.
Tirando isso, estou satisfeita, aliviada e com uma moral da história para me lembrar mais tarde.
Estes senhores da tua banca esqueceram-se do tempo em que também estiveram a defender uma tese.O tempo deve ter-lhes corroído qualquer resquício de empatia, humildade e apreço. Isso acontece em muitos lugares.Mas não te deixes abalar.O importante é que tu sabes ter feito o teu melhor.Não sei como se faz a avaliação de uma tese em Portugal,se por notas, conceito ou parecer. No entanto: "Te dou nota 10!" Para mim, és a melhor!
ResponderEliminarÉ verdade Márcia, as pessoas tendem a esquecer-se.
EliminarA tua "nota 10" cá é "nota 20" e foi uma pena não ter chegado lá.
Mas dentro de mim, sei que consegui.
Beijinho grande para ti.