Hoje abri o jornal e o meu coração expulsou-se do peito.
As minhas pernas vergaram-se e as mãos encheram-se de suor.
Os olhos tremeram. Ainda tremem.
Há cerca de quinze anos fui catequista. Por ordem natural no meu percurso religioso e porque quis passar por essa experiência.
Nessa altura completamente despreparada da minha vida, foi-me atribuído um grupo de dez crianças com idades entre os sete e oito anos. Era o seu segundo ano de catequese e o meu primeiro e único ano como catequista.
Apesar da minha imaturidade e de não ter dado continuidade à experiência de catequizar, creio que cumpri com o que me foi pedido e com aquilo a que me propus. Foi muito positivo sob diversos aspectos e recordo cada momento, cada miúdo, e a personalidade de cada um. Tenho uma foto de grupo, tirada no último dia, que guardo com carinho. Sempre que a vejo sou transportada para um sítio bom. E ainda bem que fechamos ciclos com esse sentimento de tranquilidade.
Apesar de me recordar de muitos momentos e dos miúdos, um destes dias, quando voltei à minha terra natal, deparei-me com uma cara conhecida mas muito diferente: A Joaninha. E a Joaninha já tem vinte e dois anos no corpo (e que corpo) e um namorado atrelado à mão (e sabe Deus a mais o quê). E caramba! A miúda já tem mais anos que aqueles que eu tinha quando lhe dei catequese. Será que olhou para mim como a velha que lhe deu catequese?
Adiante.
Também me lembro bem do João, que era de Ponte de Lima e foi ali parar por força do trabalho dos pais, e no ano seguinte foi para outro lado qualquer. O João era uma criança amorosa, mas muito tímido, deslocado diria. Mas lembro-me muitas vezes do João, que já terá vinte e dois ou vinte e três anos e terá uma vida longe das minhas memórias da catequese. Mas imagino-o bom, com bom carácter e amigo. Assim espero que seja.
A Marisa, que também foi ali parar naquele ano por causa do trabalho do pai, tinha voz de desenho animado e tinha sempre a desculpa do chichi para estar o mínimo de tempo possível na sala. Eu percebia, piscava-lhe o olho e deixava-a ir. A cumplicidade e a confiança que quis fomentar entre adulto-criança foi sempre mais importante para mim, do que lhes dizer que Jesus foi o tipo mais espectacular que passou pela face da terra. Até porque havia dias em que própria tinha as minhas dúvidas. Creio que a Marisa não terá ido longe na vida (pressentimentos) e acredito que aqueles olhos triste só o estão ainda mais.
E heis que depois...
Depois, havia o Gonçalo.
O Gonçalo, esse caso especial de falta de educação, foi a criança que desenhou Jesus a snifar um risco de coca e escreveu isso mesmo no desenho, foi aquele que me apalpou as mamas, foi aquele que me mandou à merda e foi aquele - o único - que teve de levar um estalo na cara. Os pais do Gonçalo eram pessoas conscientes do filho que tinham e apoiaram a repreensão que lhe dei. Sempre houve um entendimento muito cordial entre nós.
A avó do Gonçalo, soube-o mais tarde, também foi minha catequista em criança e era a mulher que eu admirava na igreja porque cantava o salmo como um anjo. Eu dizia que quando fosse grande queria ser cantora do salmo, por causa dela. Lembro-me bem de o dizer à minha mãe.
Pois hoje, quando abri o jornal, o coração recuou quinze anos e morreu por quinze segundos.
O Gonçalo teve um acidente de viação grave, antes de completar os vinte anos. Não teve a culpa mas é ele que carrega o fardo de ter perdido a vida como a conhecia. Ficou paraplégico, em estado vegetativo, e agarrado a uma vida que não existe mais. Os pais, a avó, lutam como só eles poderiam lutar mas os recursos esgotam-se e a recuperação, ainda que lenta, pode estar comprometida.
Doem-me todas as partes do corpo e da alma por ver o Gonçalo e a família a passar por isto porque, para mim, o Gonçalo ainda tem sete anos. Ainda corre pela igreja, rouba hóstias e goza com as perucas dos santos. O Gonçalo ainda é a criança cheia de vida, de sangue na guelra e com um futuro cheio de promessas. Ainda o vejo com aquela cara malandra de quem prepara o próximo golpe contra a sua catequista.
Hoje, a fotografia do Gonçalo no jornal, lembrou-me que a imprevisibilidade da vida pode ser uma merda.
Apeteceu-me recuar quinze anos, dar o mesmo estalo ao Gonçalo e dizer-lhe que a vida vai ser curta e que ele devia continuar sempre a viver a mil à hora e aproveitar todas as chances da vida. As boas, as más. Porque, ao fim ao cabo, a dele foi interrompida quando não fez nada por isso, quando não teve culpa nenhuma.
Espero que a fractura que sinto em mim se recupere como sinónimo de que o Gonçalo também se recuperou. Que as ajudas cheguem depressa e que a esperança que tem movido os pais nunca, mas nunca, vacile.
Gonçalo, hoje vou beber um copo por ti, vou sorrir por dentro e por fora na esperança que o sintas, e vou pedir a Deus e a Jesus que olhem por ti. Eras criança. Com certeza se riram muito contigo. Com certeza que os fizeste felizes.
E haverá lá recompensa maior que ter um filho que corre pela nossa casa, enquanto brinca e ri.
Dói. Dói muito. A porra da catequese não ensina a não doer...
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