5152 dias. Há 5152 dias que não via a luz do dia. Há 5152 dias que não contava os dias e por isso lhes perdera a conta. Não sabia quando começavam nem quando terminavam. Dormia quando os olhos se fechavam e acordava quando o ar lhe faltava. Não estava viva por instinto mas por falta de falência do corpo. Nunca foi por vontade própria que se manteve viva. Mas também não desejava morrer por não saber o que seria pior. Os olhos, cegos pela luz que não tinha, inibiam-lhe o caminho das mãos. Escrevinhava com as unhas grandes pelas paredes, mesmo no desencaminho das vistas. Comia coisas que sentia vivas entre os seus pés e os seus cabelos. Bebia a água fétida que escorria pelas paredes, em lambidelas, onde maltratava a língua, na aspereza do musgo que ali crescia. As suas entranhas travavam-lhe o alimento à boca mas empurravam-lhe as mãos revoltas contra todas as paredes. Escrevia cega. Escrevia desenfreadamente como se visse. Escrevia como se tivesse as mãos de fada de outrora, em vez das mãos de monstro que agora sentia. Escrevia primeiro com a cabeça e não com o corpo e talvez por isso não perdesse o rumo ao texto.
Para li fora empurrada há 5152 dias para escrever uma história única e, sem saber, assim o havia de cumprir. A história escrevia-se a cada segundo. A sua vida também.
A vibração imensa das paredes parecia entrar-lhe no cérebro de uma maneira mortal. Ela bem sabia que suspeitava preferir viver num vazio, a ter de morrer, por prever que a morte podia ser assim cruel. Não ouvia qualquer ruído, há mais dias que aqueles que saberia contar, e por isso rendeu-se ao medo. Uma luz invadiu-lhe num ápice os olhos que acreditava cegos. Figuras de homens apossaram-se do espaço onde estava e entoavam palavras confusas. Pareciam felizes mas incrédulos. Quiseram tocar-lhe e ao mesmo tempo ceder ao espanto. Os focos de luz que apontavam sobre as paredes verdes e negras revelavam agora uma realidade dura a todos. A escritora que todos procuravam nunca se perdeu. Esteve sempre ali, naquelas paredes escritas à unha. Morreu apenas a mulher. Morreu a mulher escritora de preceitos rigorosos. Nasceu a nefelibata. Nasceu o que aquele antro conseguiu parir: a melhor escritora que o mundo havia de descobrir.
A adorável jovem recebia os aplausos de todos os que se iam juntando ao auditório. Decididamente todos lhe reconheciam o talento e não estavam ali por outro motivo, que não fosse, dizer-lhe o quanto as suas palavras inspiravam todos, por esses pensamentos fora. Por esses corações adentro. Apesar de incrivelmente jovem, não sabia respirar mais nada que não fosse prosa intensa e bem estruturada. De bom cálculo gramatical e sem desalinho a apontar. O rigor pautava-lhe as linhas. Nascera uma daquelas figuras raras por entre os humanos. Criou-se uma escritora como nunca se havia visto.
Talvez por tal cobiça ter sido tão propagandeada, a sua história pessoal foi travada por um episódio sórdido, demasiado real. Havia quem não soubesse parar. Provar-se-ia anos mais tarde que havia mesmo quem não soubesse distinguir a ficção dos livros da realidade da vida. Pois que houve, infelizmente, quem quisesse escrever história com as suas próprias mãos, sem recurso a caneta e papel, mas roubando anos a uma vida que tão bem escrevia.
Há 5152 dias, a escritora mais promissora da década foi aprisionada por um homem que a queria escrevente apenas para si. Há 5152 dias atrás conheceu a cave nojenta onde havia de escrever a sua obra-prima.
muito muito bom.
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