26.11.12

O homem que não tinha sapatos



Estação de Metro de Marquês de Pombal - Lisboa - 25.11.2012 - 11h30





*

Cheguei a casa e descalcei as botas.
Meti os pés sem meias no chão frio e lamentei.
Lamentei um mundo de coisas. Lamentei por mim. Lamentei ser esta pessoa triste. Sem forças.
Depois lamentei pela vida daquele homem. Não me saiu da cabeça a viagem toda. Lamentei ter sido egoísta. Lamentei o que fiz de mim. Mas o que mais lamentei foi não ter tido força para parar ali e pensar. Pensar e agir. Naquele momento não devia ter havido a urgência em apanhar o comboio. Ninguém esperava por mim. Não devia ter sentido vergonha e fingido que não tinha visto. Não devia ter desviado o olhar com medo que o homem tivesse alguma reacção. Eu devia ter parado e olhado para o homem. Para a pessoa que é. Devia ter falado com aquele homem. Devia ter-lhe pedido que ficasse por ali mais um pouco. O tempo necessário para eu esquecer o comboio e correr até qualquer lado para lhe comprar uns sapatos. Não precisa de luxo quem nunca o teve mas precisa de conforto quem vive desconfortável.
Eu tinha de ter feito alguma coisa. Estava ao meu alcance. Devia ter agarrado nas minhas pernas e ter feito um pouco de nada para mim mas que poderia ter sido muito para aquele homem. Podia ter arranjado uns sapatos. Uns sapatos e um casaco quente. Não tinha de salvar aquele homem do mundo mas podia ter feito, pouco que fosse, por ele.
Eu devia ter sido gente!
Eu devia ter sido gente...

*
Entre a chuva e as atribulações de arrastar uma mala de viagem, conter a maquilhagem que me caricaturava já a cara e afastar o cabelo molhado, lá me meti no Metro. 
Sem prestar atenção ao que acontecia fora de mim, fui travada pelas ironias do universo.
Na minha frente desenhava-se uma figura de um homem perdido. Comecei por lhe sentir a desorientação. Impaciente, como a sua loucura, balouçava-se sobre o seu próprio corpo, remoía qualquer coisa entre dentes e tinha os olhos abertos de surpresa, como alguém que fez a maior das descobertas.
De corpo e roupas encharcadas, apontava o dedo indicador contra um cartaz. Via coisas que eu não estava a ver. Mas via muitas coisas. Parecia eufórico.
Não o compreendi. Como poderia eu compreender? Deixei de compreender o que fosse quando lhe vi a figura completa.
Aquele homem, encharcado... não tinha sapatos. 
Como poderia ele, no meio da sua demência, sentir a angustia que eu senti por o ver sem sapatos? Para ele uns sapatos serão o menor dos seus problemas? Não consegui pensar. 
Olhei para os pés com dor. Tinha-lhes enrolado dois sacos de plástico. Atou-os com um nó em volta dos tornozelos nus. Consegui sentir os pés frios. 
Desviei os olhos para conter o choro. Ele não iria compreender. Porque além de ver muitas outras coisas naquele momento, já nem ele chorava mais por si. Perdera-lhe o significado. 
Outras pessoas passaram e riram. Aquele louco estava a ver coisas e fechava e abria as grades da entrada da estação como se soubesse o que fazia. Riam de ignorantes que são. Riram, porque dá menos trabalho que sofrer. Dá menos trabalho que agir.
Aquele homem não tinha sapatos e ninguém parou.
Nem mesmo eu.


*
Desci do quarto andar, à pressa, por ter perdido o tempo que não devia a maquilhar-me e a escolher os sapatos. Lá calcei as botas novas. Enquanto descia, à pressa, do quarto andar, não parei de admirar as botas. Como são bonitas e confortáveis. O quão me favorecem o andar e a postura. Em como me fazem parecer mais nova. Namorei as botas, metidas nos meus pequenos pés, todos os cento e trinta e cinco degraus. Senti aquele conforto de quem tem o que quer por capricho. E senti-me bem por isso.
Cento e trinta e cinco degraus depois, meti os pés na rua. Chovia com intensidade e eu nunca fui de andar de chapéu. Deixei-me molhar. Deixei molhar as botas e senti-me feliz por estas me protegerem os pés. Não senti sequer o frio da água. Pude pisar poças sem que a água entrasse e senti-me satisfeita com isso. Como se aquela compra tivesse sido validada naquele momento.
Corri de mala de viagem às costas. O comboio partia dentro de quinze minutos e eu ainda nem estava no Metro. Perdi tempo a escolher as botas e a maquilhar-me mas ainda achava que tinha valido a pena. Os olhos esborratavam-se aos poucos mas as botas ficavam ainda mais bonitas molhadas. 
Eu tinha uns sapatos nos pés.






12 comentários:

  1. Somos o que a sociedade faz de nós...

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  2. Tu, eu, tantos de nós já o fizeram. É importante fazer algo, sim. Mas também o é reconhecer que algo está mal. E a maior parte das pessoas nem sequer o percebe.

    Talvez pares da próxima vez. Talvez eu pare também.

    R.

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  3. Um Novembro muito cinzento Sra. Mendes, espero que o mês de Dezembro seja mais positivo e traga de volta um pouco do romance e da sedução que pairam pelos cantos do Blog.

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    1. Sr. Mendes, como eu aprecio meses cinzentos.
      E como costumo dizer: os meus Dias são Cães, não são cor-de-rosa.
      Mas gostei dessa análise e, só por causa disso, o próximo texto vai ser ao seu gosto ;)

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  4. infelizmente habituámo-nos a ver as pessoas como números, e estas em particular como lixo.

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  5. Tu quando escreves consegues tocar-me. Eu quando te leio consigo ver-te. Que maravilha, pá! Foi bom não cá pôr os pés durante umas três semanas e ter tanto para ler.

    Enfim, este texto é magnífico.

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  6. Não ando desaparecido. Simplesmente prefiro voltar somente quando há vários textos novos para ler (não estou a criticar o facto de não escreveres todos os dias).

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    1. Ok. Dou a mão à palmatória. Não estou a ver quem sejas mas estava na esperança de com o anterior comentário perceber :) Mas conhecemo-nos, não conhecemos?
      Há qualquer coisa que me diz que sim...

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  7. Já agora, a tua redenção, na tua cidade preferida :P

    http://news.yahoo.com/blogs/lookout/nypd-boots-homeless-man-photo-145219581.html

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    1. Não foi um gesto meu.
      Não me desculpa em nada e só me penitencio mais por não ter agido.
      Afinal, até houve quem fizesse o que eu devia ter feito... e não fui eu.
      (Aiiiiiiiiiiiiii, New York, New York...)

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