31.1.14

O preto e o fascista



pre·to |ê| 
adjectivo
1. Da cor do ébano. = NEGRO
2. [Brasil, Informal]  Perigosoarriscado.
adjectivo e substantivo masculino
3. Diz-se de ou indivíduo de pele negra. = NEGRO
substantivo masculino
4. A cor negra.Ver imagem
5. [Física]  Ausência de todas as cores (por oposição a branco que é a reunião de todas).
6. Indumentária dessa cor (ex.: foi à ópera de preto).



fas·cis·mo 
(italiano fascismo)

substantivo masculino
1. [História]  Partido e movimento político em Itália que tinha por emblema os fascese terminou após a Segunda Grande Guerra depois de vários incidentesnum dos quais foi morto o seu chefe Mussolini (1883-1945).

2. [Política]  Tendência para o excesso de autoritarismo ou para o controlo ditatorial.


in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, http://www.priberam.pt/

Ultimamente (e apenas ultimamente) tenho-me apercebido que nos Estados Unidos há um grande problema em dizer-se a palavra "preto" como adjectivo qualificativo de um individuo, claro está, de raça negra.
Nos Estados Unidos chamam-lhes "negro", mas o adjectivo é tão mal visto que, para evitar a palavra negro, dizem "the "N" word": a palavra "N". Nem sequer a proferem!
É evidente que não têm problemas em dizer "black". Acho que ninguém diz: "the "B" word", mas a palavra "preto" não pode ser verbalizada.
"I'm the first black woman winning so many music awards", dizia a Beyoncé até com algum orgulho. Para mim, na minha minuscula visão do mundo, ele própria é que se catalogou e pelos vistos sem problemas nenhuns. Se eu tenho dito "sou a primeira branca a ver um concerto do Eminem" estava-se tudo pouco borrifando. Que raio de adjectivo qualificativo seria a palavra "branca"? 
De facto, o preconceito está mesmo na cabeça das pessoas, e isso não tem cor nem credo.

Entretanto, pus-me a pensar que adjectivo equivalente teríamos nós em Portugal, que fosse igualmente ofensivo. "Preto", pode não ser lindo, mas a meu ver é o que é. Há pretos, há brancos. Espero que ninguém me venha dizer que sou cor de "salmão da Noruega apanhado no mês da desova". Como não acho lógico que se chame "escuro" ou "cor-de-chocolate" a uma pessoa de raça negra. Somos pretos, somos brancos. É igual.
Pronto, e lá fiquei a pensar que éramos os melhores do mundo e que os americanos são uns patetas que inventam coisas onde não há. Estava quase a concluir, e a fechar esta história na minha cabeça, que não existia um equivalente em português para a ""N" word", até que...

[muda a linha que isto agora é outra conversa...]

Hoje, depois de um episódio de despotismo (coisa insignificante mas que me fez pensar no que andamos aqui a fazer e quem manda em quem) veio-me à ideia a palavra "fascista". Porque entretanto escrevi a palavra "fascista" e a coisa não me pareceu bonita. Dei até por mim a pensar o quão ofensivo seria eu chamar, de viva voz, fascista a alguém. Tentei redimir este pensamento fazendo o paralelo com a palavra "negro", contextualizá-la, ver que pode nem ser assim tão mau mas, chamar "fascista" a alguém, é mesmo ofensivo. Retorci mais um bocadinho o cérebro e conclui que, realmente a palavra "fascista" é muito feia mas, mais feio ainda, é sê-lo.
Será que tal como ser-se preto ou branco, é o que é, ser-se fascista, também é o que é?
Então, porque não chamá-lo a quem, realmente, o é?

Enfim, se quisermos ver isto de um modo mais sério, chegamos à conclusão de que estamos neste ponto, porque é a história que temos. É o passado que herdamos.
Os americanos não lidam bem com os tempos da escravatura e com a descriminação que criaram, e nós não vivemos bem com o tempo em que um mandava e os outros baixavam as orelhas, mesmo que isso custasse a ignorância, a fome, a miséria e a falta de liberdade de um povo inteiro.
Há-de haver outro país onde não se podem fazer piadas com a palavra "gás", hão-de haver outros onde não se pode dizer "Cristiano Ronaldo". As coisas são como são.
Cada um vive com os seus fantasmas e pensamos que, apenas por proferirmos palavras, estamos a evocar o regresso deles.





29.1.14

A outra que te fugiu




Verdade. 
Ela fugiu-te das mãos, dos braços, da pele, da vida, de um futuro, de um livro por escrever, de um animal de estimação por ter, de um filho que não queria. Fugiu-te da casa, do pó, da louça, das escadas sem fim, do fôlego por recuperar. Queria respirar. Fugiu-te das lembranças que não quis levar, fugiu-te aos jogos e ao amor. Fugiu-te da pessoa que és. Fugiu-te da vida que lhe podias dar. Fugiu dela própria para se encontrar num outro lugar. Fugiu-te das palavras, dos actos, das omissões e de tudo o que lhes davas e que só ocupavam o tempo que não tinha. Fugiu-te do ar que lhe tiravas. Do amor frenético que duplicavas pelos dois. Fugiu-te porque estava cansada de vos olhar.
Pois não, não compreendeste, nunca compreendeste. Nem a ela, nem às outras, nem a todas as que um dia terás. Que te fugiram dessa imensidão de coisas que sentes e as obrigas a multiplicar.

Nunca precisaste evadir-te de ti para te voltares a encontrar? Noutra forma? Com outra mente? Com outra alma? Num outro lugar? Nunca precisaste de te voltar a encontrar?
Não consegues olhar para trás, ver o mesmo filme vezes sem conta a passar, e conseguir prever como é que o filme irá acabar?

Mais uma que te fugiu. Pois fugiu. Fugiu-te.
Escapou daquilo que não queria, do que sabia que iria ter. Do que sabia que tu tinhas para lhe dar.
Fugiu-te. 
Verdade: Não irá voltar.




28.1.14

O homem das calças curtas




O homem das calças curtas, era altivo, sobranceiro e arrogante. 
Olhava as mulheres de cima, porque as mulheres não lhe mereciam elevação. Talvez se permitisse ter pensamentos subtis, mas pouco honestos, sobre aquelas que apresentavam andar confiante e nariz afiado. Pelo confronto. Pelo desafio. Por serem as mulheres que a mulher dele nunca haveria de ser. 
Com os homens, tornava-se estranhamente submisso, como um cão, porque tinha as calças curtas (e dentro de si sabia-o). Elogiava sempre as calças dos outros, mesmo sabendo que os outros não lhe poderiam retribuir o elogio. Aparentava não se importar mas definhava por dentro. Não se sentia confiante perto dos outros homens que usavam calças à medida, e a culpa morria-lhe em cima por saber que nada fez para isso mudar. Preferia o servilismo à afirmação, mesmo não se dando conta disso. Nunca haveria de passar de um fraco de calças curtas que apenas em saias sabia mandar. Era o que se dava por contente de ser. Era uma triste falta de ambição.
Pontualmente, os mais atentos, bem viam como se movimentava, falsamente, de coluna hirta mas deixando germinar, dentro de si, uma semente de incertezas. Andar firme, palavra assertiva, mas calças curtas e alma desconcertada. A insegurança que se espalhava dentro de si, como um lamaçal sobre campos empapados, teimava em invadir-lhe a mente e a encurtar-lhe as pernas. E havia mesmo quem reparasse, apesar de ele jurar em pensamentos, que não.

O homem das calças curtas estava tão longe de entender que tinha as calças demasiado curtas que, no dia em que se decidiu a olhar ao espelho, já não se encontra em si, nem nas calças, nem a si dentro das calças. Perdera-se tanto na contemplação dos outros que, no dia em que se olhou, é que entendeu que as calças, que em tempo lhe estiveram boas, agora lhe começavam a escassear. Sobravam-lhe os lados, fugiam-lhe as bainhas. Aquelas calças já não eram suas ou, pelo menos, já não eram para si. Há momentos em que um homem o deveria perceber sem que alguém lho tenha de dizer. Maldito o tempo que esgotou a olhar para os outros em vez de olhar para si e de perceber que aquelas calças há muito que estavam curtas.
Assombrado com a descoberta, a contorcer-se contra as suas próprias memórias e crenças, confrontou-se uma vez mais com a sua imagem no espelho. Estupefacto viu: As calças já não eram mais que uns meros calções. Ainda se debateu, mentalizando-se que, o que via, eram apenas umas calças muito, muito, curtas. Demorou a aceitar que não passavam de uns calções e que há muito que, o que tentava esconder, estava já exposto aos olhos de todos. Há muito que aqueles calções estavam longe daqueles tempos áureos em que soube usar umas calças decentes.

Num fugaz momento de lucidez, questionou-se: "Nunca terei sentido o frio a fustigar-me as pernas ou terei preferido viver na ilusão de um conforto que há muito deixou de existir?".

Este pensamento ocorreu-lhe tarde demais. 
Quando, finalmente, se deu conta, já nem a dignidade tinha para se cobrir. 



26.1.14

O mito




Há um velho louco que todos veneram que espalha beijos pelas crianças e sabedoria pelos adultos. Que fala sozinho, que fala entre-dentes, e que fala com todas as mulheres e homens que a si se dirigem.
Deambula pela cidade, arrastando consigo apenas o seu corpo e as suas vestes. Não possui casa, nem bens, nem cão, nem comida. Tem-se apenas a si e às suas duas histórias: a verdadeira e a imaginada.
Não depende de ninguém, não aceita esmolas, não espera compaixão. E nunca escondeu não ter nada para oferecer. As pessoas, contudo, acreditam que sim. Acreditam em tantas coisas como a loucura dele também o faz acreditar. As outras pessoas, que não aquelas que habitam dentro dele, mas antes aquelas a quem se desconhecem patologias, acreditam, exactamente, nas mesmas insanidades que ele. Que fenómeno curioso este.
Um homem, um velho homem desabrigado, sem instrução, sem amor a si ou aos outros, sem moral nem alma, consegue impor fantasias e alegorias sobre si a um enorme punhado de gente. Todos acreditam que ele é bom demais para a pouca sorte que lhe coube, que é um injustiçado, um infeliz, um desgraçado incompreendido. Um coitado a quem ninguém chama coitado porque é feio dizer-se o que se pensa. Mas ninguém pensa quão feio pode ser aquele homem que é tudo menos coitado. Todos vêem um mito. Ninguém vê a verdade. Ninguém vê o louco, o doente, o mentiroso. Ninguém conhece o homem violento, desequilibrado e imprevisível que ele poderá ser. É mais tranquilo acreditar apenas no que se vê. Faz melhor à alma ver um enjeitado indefeso que um delinquente que se acobardou com o seu passado. Vive-se melhor assim. 
Acreditar na paz daquele velho louco, traz paz a todos os que o conhecem. Acreditar que aquele homem que todos beijam, cumprimentam, com quem conversam e de onde acreditam existir sabedoria, é mais consolador que acreditar na mentira, no engano, na insegurança e no medo que ele representa. Invadir a cabeça das pessoas é perigoso mas real.
Perigoso para quem não quer ver a verdade. Real para quem a sabe manipular.

No dia em que esse homem abandonar este mundo, e a cidade que diz ter vindo salvar, muitos lhe sentirão a falta no primeiro dia em que se tornar pó. Muitos irão lembrar o homem bom que sabia tudo. O amigo do povo. O único desabrigado. Mas o que muitos outros nunca saberão, é que ele foi apenas, e só, mais um louco que ninguém travou.





18.1.14

33 coisas

fotografia original de Sónia Silva



33 coisas confessáveis para fazer até aos 34:

1º -
2º -
3º -
4º -
5º -
6º -
7º -
8º -
9º -
10º -
11º -
12º -
13º -
14º -
15º -
16º -
17º -
18º -
19º -
20º -
21º -
22º -
23º -
24º -
25º -
26º -
27º -
28º -
29º -
30º -
31º -
32º -
33º -

Eu sei lá.
Depois preencho.




16.1.14

O "querer" e o "poder": esses conceitos desavindos.





que·rer |ê| 

(latim quaero, -ere, procurar, buscar, perguntar, informar-se, procurar obter, pedir)

verbo transitivo
1. Ter a vontade ou a intenção de.

2. Anuir ao desejo de outrem.
3. Ordenar, exigir.
4. Procurar.
5. Poder (falando de coisas).
6. Requerer, ter necessidade de.
7. Fazer o possível para, dar motivos para.
8. Permitir, tolerar (principalmente quando acompanhado de negação).
9. Admitir, supor.
verbo intransitivo
10. Exprimir terminantemente a vontade.
11. Amar, estimar.
verbo pronominal
12. Desejar estar, desejar ver-se.
13. Amar-se.
substantivo masculino
14. Desejo, vontade.


po·der |ê| 
(latim vulgar *potere, de possum, posse, ser capaz de, poder)
verbo transitivo
1. Ter a faculdade de.
2. Ter ocasião ou possibilidade de.
3. Estar sujeito a.
4. Ter força física para.
5. Ter razões para.
verbo intransitivo
6. Ter força, possibilidade, autoridade, influência para.
verbo auxiliar
7. Usa-se seguido de infinitivo para indicar possibilidade de ocorrência (ex.: isso pode acontecer) ou pedido de autorização (ex.: posso entrar?).
substantivo masculino
8. Possibilidade, faculdade.
9. Força física, vigor do corpo ou da alma.


in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, http://www.priberam.pt/dlpo/poder [consultado em 16-01-2014].




Acontece-me mais vezes do que gostaria, querer muito uma coisa e não poder tê-la ou realizá-la. Acho que hoje estou nessa encruzilhada novamente.

Olho para mim, para as expectativas sobre mim, e entendo que nunca estarei à altura, porque a distância entre o querer  e o poder, nem sequer é contabilizável. É imensa.
Há dias, em que me culpabilizo por não responder ao estímulos. Outros dias há, em que sou autocomplacente, mascarando a verdade dura de que não faço mais porque não quero. Dizer-se que não se tem ou não se faz porque não se pode, é mais aceitável, mas dizer-se que não se faz, porque não se quer, mostra menos fraqueza.
Já tive momentos na vida em que superei o medo de querer e, assim, consegui pôr em acção a vontade, o poder. É menos emotivo elevarmos a capacidade de poder em vez do querer. Querer é mais visceral. Move mais emoções, tensões, convicções. Admitir que queremos, que ambicionamos algo, torna-nos mais ferozes, mais combativos. Exige suores que nascem de dentro dos nossos pensamentos e ganham uma força extraordinária ao alcançar o nosso exterior. O poder e não querer, coloca-nos num local escuro: o sítio daquele medo que julgamos adormecidos em nós. 
E quererá alguém viver com o medo de querer e não poder?

Hoje, depois de uma pequena instrospecção, percebi que tenho muito querer mas pouco poder. E isso, até ver, ainda não me serviu de coisa alguma. Apenas alimentou o medo de um dia vir a desistir de mim.



O meu lindo funeral



Hoje pus-me a pensar no quão importante é tratarmos do nosso próprio funeral.

E de onde é que veio isto?
Um colega meu em estilo de brincadeira sem graça desejou-me a morte e eu fiquei a matutar que não quero que este tipo de gente vá ao meu funeral. Mas como poderei evitá-lo?

Fazendo uma guest list.
Ah pois é!

E como os amigos e a família não se podem deserdar destes eventos tive, precisamente, de pensar numa guest list para os meus colegas de trabalho. É esse grupo que tenho de limitar.
Ora o meu local de trabalho tem cerca de mil e duzentos funcionários e, como é evidente, não conheço nem metade desta gente. Pois da metade que conheço, estimo que um terço não goste de mim e, é garantido, que o outro terço das pessoas seu eu que não gosto delas. Sobra, portanto, o último terço, colegas de trabalho entre os quais alguns bons amigos, de quem eu gosto ou, pelo menos, não desgosto. Perfaz, mais coisa, menos coisa, duzentas pessoas. E duzentas pessoas já são muitas pessoas. Duzentas pessoas chegam para encher, à justa, quatro autocarros para fazerem a viagem até à minha terra natal.
[Já vos estou a ver a cantar o Kumbaya durante os 120 km que separam o nosso local de trabalho da minha aldeia que Deus me livre de ficar enterrada numa terra que não é minha.]

Vá, metade dessas pessoas vão ter outras coisas para fazer e acabarão por arranjar uma desculpa para não ir. Tudo bem, desde que avisem com antecedência. Não quero lugares vazios na plateia.
Pois então, se eu morresse, e na visão optimista de que o meu funeral vai ser um acontecimento importante (sobretudo se morrer jovem, como o outro me desejou), o meu patrão iria dispensar os funcionários que quisessem acompanhar-me à última morada, bem como os autocarros para o efeito. Só do meu trabalho iriam, então, cem pessoas, e cem pessoas são dois autocarros cheios. Assim ao estilo de "ide lá à capital ao Colombo e ao Vasco da Gama aproveitar os saldos participar da manifestação que nós bancamos tudo".
Mas, de repente, quando cheguei a este ponto do raciocínio pensei: "Alto!!! Ninguém vai passear à minha conta".
Foi então que firmei esta ideia de ter uma guest list para o meu funeral. A importância de ter uma num funeral. Evitam-se constrangimentos, falsas carpideiras, e a conversa do "coitadinha era tão nova".
Com uma guest list garante-se a presença apenas daquelas que desejamos ter ali, naquele momento importante.

Entretanto, saltou-me o raciocínio para outras minudências:
Se a minha entidade patronal tivesse a linda ideia de mandar uma coroa de flores (com um cartãozinho lá pendurado como seu o fosse ler), que flores quereria eu?
Pensei em orquídeas só para lhes lixar mais [como se fosse possível, ahahaha...] o orçamento.
Depois pensei que isto era bonito se tivesse uma mensagem, um simbolismo. Pois era. Então que sejam cravos vermelhos. Só assim, naquela de me ser devolvida a liberdade de expressão, ali, na hora da morte.

Quanto aos acepipes, não haveria, porque não estamos na América.

Quanto à mortalha, não é preciso complicar: quero ir com as minhas skinny jeans pretas, e uma long sleeve básica preta. As argolas de ouro que a minha avó me deixou e as sabrinas de leopardo.

Quero um fotógrafo mas não quero ser fotografada. O fotógrafo é só para apanhar o ambiente do evento. Porque não faltava mais nada que era nas últimas fotografias cá por cima, ter o azar de ser apanhada de olhos fechados.



15.1.14

Uma carta de Alfred de Musset

Claude Monet


Para George Sand, 1833


           Minha querida George,
          Tenho uma coisa estúpida e ridícula para te dizer. Depois de voltar de um passeio, tolamente escrevo em vez de to dizer, não sei porquê. Esta noite estarei irritado por tê-lo feito. Tu vais rir-te de mim, por me tomares por um charlatão, indicando-me a porta da rua por pensares que estou a mentir. Estou apaixonado por ti. Estou-o desde o primeiro. Pensei poder curar-me, pensando em ti simplesmente como amiga. Há muitas coisas no teu carácter que me podiam sarar. Tentei convencer-me de que o podia fazer eu. Mas sofro a cada momento que passo contigo. Prefiro dizer-to, e penso ter dito bem, pois vou sofrer menos depois de me rejeitares. Esta noite [nota George Sand, que editou as cartas de Musset, riscou as duas últimas palavras, e com tesoura cortou a linha seguinte] decidi que soubesses que estou fora, mas não quero fazer disso mistério nem discutir sem razão. George, vais dizer agora, "outro fulano que está a tornar-se um maçador", como costumas dizer. Se não sou o primeiro, diz-me, como me disseste ontem de outra pessoa, o que devo fazer. Mas peço-te, se pensas dizer-me que duvidas da verdade do que escrevo, então preferia que não me respondesses. Sei o que pensas de mim, e nada espero ao dizer-te isto. Apenas antevejo perder uma amiga e as únicas horas agradáveis que passei durante um mês. Mas sei que és gentil, que és gentil, que és amada, e confio em ti, não como amante, mas como uma franca e leal companhia. George, sou um idiota ao privar-me do prazer em te ver no curto período de tempo em que estarás em Paris, antes da tua partida para Itália, onde teríamos passado juntos muitas noites maravilhosas, se eu tivesse a coragem. Mas a verdade é que sofro, e o meu vigor esmorece.

Alfred de Musset


Alfred de Musset nasceu em Paris em 1810.
Em 1833, depois de ler o segundo romance de George Sand (pseudónimo de Amandine Aurore Lucile Dupin), escreveu-lhe. Encontraram-se e apaixonaram-se um pelo outro. Dois anos depois ela deixou o marido. Musset tinha vinte e três anos e Sand tinha vinte e nove.
George Sand tinha uma crescente reputação como editora romancista. O facto de se vestir como homem e de o seu nom-de-plume ser masculino dava azo aos habituais sarcasmos quanto à sexualidade e vida pessoal, mas muita gente se apaixonou por ela.
Musset morreu aos quarenta e sete anos. George morreu com setenta e dois. 




13.1.14

A cidade que não gosta de si




Existe uma cidade a sul dos povos civilizados, metida entre terras secas e um céu sem fim, onde as pessoas são infelizes.
Não gostam deles, não gostam dos outros, não gostam de espanhóis nem de japoneses. Não gostam de quem os governa mas não se sabem governar. Não gostam do frio, reclamam do calor. Não gostam das estradas que dali saem nem dos caminhos que conduzem até si. Não gostam de quem os visita mas também não gostam de sair dali. 
Nunca sorriem e gostam pouco de quem gargalha. Andam de cara no chão, não se cumprimentam entre si e olham para o lado quando alguém lhes ousa falar.
Gostam de desdizer, de negar o que prometeram e de jurar que nunca juraram. São pessoas que, apesar de não gostarem de outras pessoas, preferem falar da vida alheia do que das suas próprias vidas. 
Falam mal de quem emagreceu, ridicularizam quem engordou, ironizam sobre quem se separou e invejam quem tem amor. Eles não se amam como povo, não conhecem a sua identidade e vivem aprisionados ao passado. Vivem de glórias que desconhecem, falam de figuras que não foram do seu tempo e não conhecem quem faz história agora.
Falam mal de quem escreve sobre eles mas nunca se defendem. E quando alguém os defende ficam desconfiados.
Nessa terra seca e estéril, um dia, as pessoas levantarão os rostos, olharão uns para os outros, irão trocar palavras entre si. Vão perceber que o seu mal é a solidão, que o que os isolou foi o estado de espírito e não a falta de multidão. Irão olhar para trás e ver que o que restou foram histórias sem nada para lembrar.
Mas o que estas pessoa nunca irão ver, é que nunca se permitiram ser infelizes. Porque nunca gostaram de si.



10.1.14

Ilusões



A nossa mente pode pregar-nos partidas.
Dizer-nos que está tudo mal quando as coisas estão bem.
Sentirmo-nos perseguidos quando ninguém está atrás de nós.
Ou podemos não sentir nada e na verdade estarem a suceder-se um milhão de coisas nas nossas costas.
Por vezes criamos a nossa própria ilusão.
Aquela que nos faz enlouquecer.
Porque queremos enlouquecer.
Seremos mais loucos por gostarmos de nos flagelar assim?

Amanhã poderemos ver a mesma história de outra maneira mas as consequências, essas, já as sofremos.




9.1.14

No teu regresso não estarei cá




Dançaste-me uma facada no peito.
Bruta pelo amor que não me tens.
Espancaste um peito, um rosto. Esta alma.
Partiste-me a moral, as certezas e as falanges.
Fiquei vergada. Inerte.

Foste embora de rancor na testa vincado.
Viraste costas ao que eras comigo em ti.
Venceste. Bem sabes: não mais vivi.

Joelhos no chão. Ar desgraçado.
Carpi no soalho que outrora pisaste.
Colhi lágrimas boca adentro. Sons ocos. Sem ar.
Vi-te bater com a porta na nossa sina. 
Foste homem para fugires com outra.
Não foste quem eu merecia amar.

Sem vida. Nem morte. Sem mim.
Deixaste-me agarrada ao que tivemos.
O coração foi comido com desgosto.
Apaguei os olhos, a boca, o rosto.
Cortei as mãos. Queimei os pés.
Garanti que para ti não mais voltaria.
Não estarei cá no dia em que te arrependeres.



8.1.14

Dentro mim estou só




Meto-me na cama.
São 20:45.

Entrei em casa cedo.
O cheiro da humidade recebeu-me.
Não aguento mais entrar nesta casa só.
A casa só.
Eu só.
Ambas às escuras.

Finjo um jantar.
Olho a roupa por secar.
Não me importa.
Tiro as botas pesadas e dispo as calças.
Só as calças.
Neste peito sinto frio.
Empurro coisas para parecer que as arrumo.

Procuro o sofá mas preciso da cama.
É cedo.
Aguento-me não sei em nome de quê.
Mudo os canais.
Ligo a net.
Procuro coisas que não conheço.
Não encontro nada.

Releio cartas.
Vejo fotografias.
Relembro algumas histórias.
Viajo até um passado longínquo.
Regresso a um passado recente.
Não me encontro em nenhum deles.
Não sou eu.

Percebo quantas vidas já tive dentro de mim.
Vi-me feliz e na mais pura das misérias.
Encontrei aquela pessoa que queria ser hoje mas não sou.
Passei por aquela que só queria agradar aos outros.
Relembrei a pessoa triste que não gosta de si.
Vi muitas pessoas dentro da mesma cabeça.
Não sei que é feito de mim.

Entro em casa e sinto-me só.
São 20:45.
Estou na cama  porque não encontrei outro caminho até mim.



2.1.14

2014



Parece que já começou.