O álbum de fotografias. O cão. O relógio de pulso. As roupas. A aliança. A máquina fotográfica. A garrafa de Porto com mais de 30 anos. "O Muro" de Sartre. "A Metamorfose" de Kafka.
Por mais que quisesse salvar-se juntamente com todos os bens que o preenchiam e identificavam como homem, teria de abandonar todos sem hesitações ou lamúrias.
O tempo esgotava-se e mal conseguia oxigenar as ideias que o podiam salvar daquele lugar. Ofegante, de fumo e de gases, as vistas também não encontravam o caminho. O desnorte aumentava perenemente. Urgia arrastar-se dali.
As chamas que começaram por lhe consumir o sofá, onde adormeceu de cigarro intermitente, alastraram-se como crude pela alcatifa e pelos livros. Nem as viu nascer e antes que as visse medrar já lhe engoliam a casa e as recordações.
Pelo meio das trampas que acumulava sem sentimento, existiam os objectos a que guardava culto e adoração. Aqueles que nunca imaginou morrerem antes de si. Aqueles objectos que para ele seriam uma espécie de sombra da sua passagem pela vida. Aqueles que fariam um retrato de si para os que viessem depois. Não eram objectos de conforto para satisfação fugaz. Eram objectos que contavam a sua história.
No meio da escuridão incandescente sentiu passar pelos seus pés o seu cão Rimbaud. Um fidelíssimo Jack Russel Terrier que que lhe aconchegava a solidão quando entrava em casa e deixava o mundo para trás da porta. Olhava o dono com doçura em ângulo íngreme, punha a cabeça a jeito de uma festa e depois seguia para o seu tapete. O Rimbaud era o companheiro mais discreto que poderia ter desejado. Nunca o deixaria ficar mal.
Ter procurado o seu socorro naquele momento indiciava a aflição do animal. Se Rimbaud não sabia a direcção da porta da rua, quem mais saberia? A garganta estreitou-se de realidade. Não conseguiria sair dali. Continuou rasteiro pelo chão, amagado por objectos projectados pelo calor e pelas chamas. Alguns reconhecia-lhes as formas, muitos outros não passavam de coisas vagas. O desmoronar de centenas de livros naquele momento derem-lhe um conforto estranho por perceber que estava no sítio certo. Em contraponto, nauseou-se ao realizar que milhões de palavras se perdiam naquele momento. Por causa de um estúpido cigarro! Lembrou-se de passagens de Kafka, de Sartre... do próprio Rimbaud... "Manhã coberta, em Julho. Um gosto a cinza voa no ar...". Perdia-os agora. Os seus livros. Serão sempre diferentes dos outros milhares que correm pelo mundo.
Os olhos arregalaram-se! O álbum! caíra-lhe o álbum em cima. Não podia perder outras memórias. As lembranças dos quarenta anos que lhe antecederam. Coisas que a mente tinha apagado ou esquecido mas que aquele álbum sempre estava lá para ressuscitar. O álbum. Antes morrer a ficar sem uma vaguidão do que foi a sua sumida, mas relativamente feliz, vida. Não podia continuar. Agarrou-o mais que a própria vida e batalhou para o salvar. Para o salvar mais que a ele próprio. As coisas que um homem faz sem sentido algum para a sua própria existência... desnorteado... estava desnorteado.
Um folgo de ar fresco quase o tombou. As luzes epilépticas assinalavam a sua urgência. Salvou-se um homem. E a sua vida. E a sua vida dentro de um álbum. Rimbaud ficara para trás. Tanto o das palavras. Como o amigo.
No conforto da pensão, em que havia de ficar nos próximos tempos, abriu solenemente o álbum a quem quis salvar a alma. De emoção nos olhos, exasperava-se por ver a sua vida, como se de postais se tratassem. Como se o episódio do incêndio se extinguisse desde que as memórias, falsamente coleccionadas em papel, se mantivessem intactas. Finalmente, ao abrir o álbum, estranhamente desfigurou-se-lhe o rosto: não havia mais passado. Não existiam imagens. O calor das chamas consumiu a sua história de quarenta anos. Nesse momento olhou para dentro de si e percebeu que todas elas estavam lá. Nunca de lá saíram. Nenhum fogo poderia eliminá-las. Para quê agarrar-se a um monte de folhas, cronologicamente organizadas, como se elas soubessem melhor que ele, como teria sido o seu passado?
A estranheza das prioridades, que estabeleceu naquele dia, havia de dar-lhe que pensar até ao fim dos seus dias. O fiel Rimbaud não teria morrido.
Ao Tiago, por ter sugerido este tema... "Que objecto eu salvaria se houvesse (por exemplo) um incêndio?"
O tempo esgotava-se e mal conseguia oxigenar as ideias que o podiam salvar daquele lugar. Ofegante, de fumo e de gases, as vistas também não encontravam o caminho. O desnorte aumentava perenemente. Urgia arrastar-se dali.
As chamas que começaram por lhe consumir o sofá, onde adormeceu de cigarro intermitente, alastraram-se como crude pela alcatifa e pelos livros. Nem as viu nascer e antes que as visse medrar já lhe engoliam a casa e as recordações.
Pelo meio das trampas que acumulava sem sentimento, existiam os objectos a que guardava culto e adoração. Aqueles que nunca imaginou morrerem antes de si. Aqueles objectos que para ele seriam uma espécie de sombra da sua passagem pela vida. Aqueles que fariam um retrato de si para os que viessem depois. Não eram objectos de conforto para satisfação fugaz. Eram objectos que contavam a sua história.
No meio da escuridão incandescente sentiu passar pelos seus pés o seu cão Rimbaud. Um fidelíssimo Jack Russel Terrier que que lhe aconchegava a solidão quando entrava em casa e deixava o mundo para trás da porta. Olhava o dono com doçura em ângulo íngreme, punha a cabeça a jeito de uma festa e depois seguia para o seu tapete. O Rimbaud era o companheiro mais discreto que poderia ter desejado. Nunca o deixaria ficar mal.
Ter procurado o seu socorro naquele momento indiciava a aflição do animal. Se Rimbaud não sabia a direcção da porta da rua, quem mais saberia? A garganta estreitou-se de realidade. Não conseguiria sair dali. Continuou rasteiro pelo chão, amagado por objectos projectados pelo calor e pelas chamas. Alguns reconhecia-lhes as formas, muitos outros não passavam de coisas vagas. O desmoronar de centenas de livros naquele momento derem-lhe um conforto estranho por perceber que estava no sítio certo. Em contraponto, nauseou-se ao realizar que milhões de palavras se perdiam naquele momento. Por causa de um estúpido cigarro! Lembrou-se de passagens de Kafka, de Sartre... do próprio Rimbaud... "Manhã coberta, em Julho. Um gosto a cinza voa no ar...". Perdia-os agora. Os seus livros. Serão sempre diferentes dos outros milhares que correm pelo mundo.
Os olhos arregalaram-se! O álbum! caíra-lhe o álbum em cima. Não podia perder outras memórias. As lembranças dos quarenta anos que lhe antecederam. Coisas que a mente tinha apagado ou esquecido mas que aquele álbum sempre estava lá para ressuscitar. O álbum. Antes morrer a ficar sem uma vaguidão do que foi a sua sumida, mas relativamente feliz, vida. Não podia continuar. Agarrou-o mais que a própria vida e batalhou para o salvar. Para o salvar mais que a ele próprio. As coisas que um homem faz sem sentido algum para a sua própria existência... desnorteado... estava desnorteado.
Um folgo de ar fresco quase o tombou. As luzes epilépticas assinalavam a sua urgência. Salvou-se um homem. E a sua vida. E a sua vida dentro de um álbum. Rimbaud ficara para trás. Tanto o das palavras. Como o amigo.
No conforto da pensão, em que havia de ficar nos próximos tempos, abriu solenemente o álbum a quem quis salvar a alma. De emoção nos olhos, exasperava-se por ver a sua vida, como se de postais se tratassem. Como se o episódio do incêndio se extinguisse desde que as memórias, falsamente coleccionadas em papel, se mantivessem intactas. Finalmente, ao abrir o álbum, estranhamente desfigurou-se-lhe o rosto: não havia mais passado. Não existiam imagens. O calor das chamas consumiu a sua história de quarenta anos. Nesse momento olhou para dentro de si e percebeu que todas elas estavam lá. Nunca de lá saíram. Nenhum fogo poderia eliminá-las. Para quê agarrar-se a um monte de folhas, cronologicamente organizadas, como se elas soubessem melhor que ele, como teria sido o seu passado?
A estranheza das prioridades, que estabeleceu naquele dia, havia de dar-lhe que pensar até ao fim dos seus dias. O fiel Rimbaud não teria morrido.
Ao Tiago, por ter sugerido este tema... "Que objecto eu salvaria se houvesse (por exemplo) um incêndio?"
é um tema que já me 'rendeu' muitas horas de devaneio, principalmente entre amigos.
ResponderEliminarAcabo sempre a concluir que nenhum objecto é assim tão importante.
:)